Sem capital humano não há ambiente inovador

Criação de cursos de Informática e a formação de profissionais nas décadas de 1970 e 1980 mostraram-se fundamentais para o que Pernambuco representa hoje

Jaime Galvão, Ismar Kaufman e Merval Jurema, entrevistados do Memória do Futuro, fala sobre educação técnica do setor de TIJaime Galvão, Ismar Kaufman e Merval Jurema conversaram sobre educação técnica do setor de TI.

Pensar na construção do Porto Digital, nos anos 1990, e no que ele se tornou depois de 20 anos – um cluster de tecnologia da informação, lugar de produção de conhecimento avançado no Nordeste Brasileiro – é também levar em consideração as bases que serviram para sustentar esse sistema. Para o surgimento do polo de inovação e negócios em tecnologia foi necessária a formação de profissionais e de uma cultura empreendedora plantada desde a década de 1970 – com a criação e a consolidação dos primeiros cursos de Informática de Pernambuco.

É sobre a importância do desenvolvimento desse capital humano e a dicotomia mercado vs. academia que gira a conversa entre o professor e empresário Merval Jurema, o professor e gestor público Jaime Galvão e o empresário Ismar Kaufman, da In Forma, convidados do encontro promovido pelo Memória do Futuro.

“Estudei Engenharia na Escola Politécnica, pois na minha época não existia ainda o curso de Informática. Fui fazer doutorado na França, voltei para o meu trabalho de técnico da UFPE e fiz concurso para professor da universidade. Alguns anos depois criei o Iteci (Instituto de Tecnologia e Informática) e dividi minha vida profissional entre as atividades acadêmica e empresarial”, relembra Merval Jurema. O empresário ressalta que não planejou essa trajetória, mas reafirma como a atuação nas duas áreas foi importante para a construção de um novo mercado profissional e empreendedor em Pernambuco.

Morando em Angola há 15 anos – país para onde levou inicialmente uma extensão do Iteci e em seguida migrou para o ramo de consultoria e auditoria  –, Merval Jurema traça uma linha histórica da educação tecnológica no Estado.

Aula no Iteci no início dos anos 2000.
Aula no Iteci no início dos anos 2000.

 

Os primeiros passos

A partir do Centro de Processamento de Dados da UFPE, Merval assistiu aos primeiros esforços para melhorar o Departamento de Informática da Universidade – que nessa época reunia também os cursos de Matemática e Estatística. Lembra que no início dos anos 1980, houve um movimento dos professores para a reunião dos pesquisadores numa nova metodologia que favorecesse a frequência e a rotina de publicações, criando a Rede de Computadores e Sistemas Distribuídos (Redis). Foi quando surgiu o compromisso de produzir conteúdo (artigos) sobre as pesquisas realizadas pelo Departamento de Informática.

“O que acontecia é que as pessoas entravam no curso, mas só 10% concluíam, porque a demanda do mercado era muito grande e elas começavam a trabalhar. No momento em que recebiam a primeira promoção, se dedicavam totalmente ao trabalho e abandonavam a formação acadêmica, conta Merval. Ele relembra que houve uma mudança de postura para alterar o rumo do departamento:

“A nossa mudança foi o compromisso de trabalhar na mesma área e também com a captação de recursos. Se você falasse sobre qualquer instituição que financiasse projetos, nós submetíamos.”

Com isso, o departamento foi o primeiro a ter ar-condicionado e microcomputador na sala, além de a financiar com bolsas os estudantes. O professor recorda também que um passo importante nessa integração entre academia e mercado foram projetos realizados para empresas como a Chesf (Companhia Hidrelétrica dos Vales do São Francisco e Parnaíba). Se antes a Chesf contratava empresas de São Paulo para fiscalizar os projetos que ela executava no exterior, a partir da organização do Departamento de Informática da UFPE, os profissionais passaram a questionar essa escolha. “Nós começamos a criticar essa postura. Com um Centro de Informática aqui, por que contratar em São Paulo, se havia profissionais com boa formação em Pernambuco? E assim, num projeto desenvolvido na Filadélfia, eles acabaram nos contratando e começamos a interagir com o mercado”, explica Merval Jurema.

Merval cita a elaboração do Primeiro Plano Diretor de Informática da UFPE e, por consequência, também o do Bandepe, como primeiros passos da integração entre academia e mercado na formação tecnológica dos profissionais de informática no Estado. Mesmo reconhecendo a importância dessa integração, ele enfatiza o quanto esse movimento de abertura para as demandas empresariais ainda era visto com ressalvas dentro da universidade e diz que muitas vezes ouviu a pergunta: “Você é professor ou consultor?”.

 

Educação tecnológica e gestão pública fomentando o desenvolvimento

No caso de Jaime Galvão, o curso de Engenharia Mecânica foi a opção para iniciar a vida profissional, mas a Informática tomou o espaço do trabalho de uma forma que o professor e gestor público dedicou a vida à atividade. “Digo que sou engenheiro mecânico por formação, ‘informático’ por profissão e professor por vocação. Ensinava na Unicap, assumi cadeiras na Sudene, implantei o curso na Unicap (Universidade Católica de Pernambuco) – que foi um grande formador profissional até surgir o Iteci. Fui presidente da Emprel na primeira gestão de Jarbas (Vasconcelos, PMDB) e estive no Serpro desde a sua fundação”, conta.

Memória do Futuro - Jaime Galvão abriu frente de treinamento na Universidade Católica, com o NIC
Jaime Galvão abriu frente de treinamento na Universidade Católica, com o NIC

Se o início de tudo teve o Centro de Processamento de Dados da UFPE como manjedoura para os primeiros pesquisadores que participaram da formação do Centro de Informática, do outro lado dessa balança despontava a Unicap, com o Curso de Ciência da Computação. A maior parte dos professores também atuava nas empresas locais e trazia a experiência e as demandas do mercado para o meio acadêmico de uma forma mais focada, como pontua Jaime:

“Vi desde o início o computador e a informática como ferramentas para a modernização e para a gestão empresarial”.

Primeiramente, o curso de Estatística passou a ter como opção Informática. Só depois se dividiram e passaram a ser dois cursos. Depois, percebendo que existia uma demanda de mercado, foi criado um curso profissionalizante”, destaca Jaime Galvão, lembrando a importância do Padre Amaral, na época vice-reitor da Unicap, como um interlocutor que enxergava o valor que o investimento em tecnologia agregaria ao futuro da universidade e do setor no Estado.

Foi a partir desse diálogo que o Curso de Informática deixou de ser oferecido apenas no Departamento de Economia e Administração e o curso de Estatística passou a ter a opção em Informática. Em seguida, transformaram-se em formações independentes. Jaime Galvão chegou a viajar para o Rio de Janeiro para observar a experiência exitosa da PUC-RJ – que tinha graduação, mestrado e também uma formação técnica em Informática, com possibilidade de ser concluída em até dois anos. “Passei uns três meses no Rio de Janeiro e vivenciei tudo para trazermos essa experiência para Pernambuco”, detalha, ressaltando o apoio importante do professor Luís de Castro Martins, da PUC-RJ.

A grade curricular foi adaptada com o tempo e as disciplinas de Introdução à Informática foram transferidas para o primeiro período, seguidas dos conhecimentos em Linguagem, Programação, Projetos Práticos e de Sistemas, entre outros. O interesse foi grande e a Unicap chegou a ter quatro turmas simultâneas de 40 alunos. Entretanto, no percurso das disciplinas, apenas 10 ou 15 estudantes de cada turma concluíam a formação.

O caminho até o Softex e o Porto Digital

De uma geração mais recente, Ismar Kaufman participou diretamente da formação do Porto Digital. Seu sucesso à frente da InForma pode ser considerado resultado desses 20 anos de investimento em qualificação profissional e acadêmica pelo qual passaram os profissionais que ingressaram na área após a instalação dos cursos de Informática na UFPE, Unicap e Iteci. “Me interessei por computação ainda no Ensino Médio. Fui aluno de Jaime no NIC. No meu primeiro período, Merval me ensinou ‘Introdução ao Computador’. Ali começava um encantamento que mudaria sua vida. Ismar conta essa história:

“A gente visitava aqueles computadores todos, achava tudo aquilo maravilhoso. Me apaixonei por informática e continuo apaixonado até hoje”.

O empresário chegou a atuar no mercado de trabalho ainda durante a graduação, trabalhando na KS Consultores Associados, mas retomou a vida acadêmica em seguida. “Voltei do mestrado, me tornei pesquisador junto ao professor Silvio Meira. Fui assistente dele no Proten e dentro dessa função acabei fazendo várias coisas e colaborando um pouco na formação do Cesar, do Softex e num novo período da Assespro (Associação das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação). No mesmo período, eu estava abrindo a In Forma, empresa na qual estou até hoje.”

Ismar ressalta o papel do Centro de Informática da UFPE (CIn) no processo de integração entre academia e mercado. Para ele, é possível distinguir três momentos históricos essenciais do CIn. Um primeiro em que a universidade se abriu para conversar com o mercado; uma segunda fase, na qual se fecha para crescer academicamente – com investimento em pesquisas e na formação de mestres de doutores, muitos no exterior; e uma terceira etapa, quando o centro se abre novamente para a Lei de Informática e para atender empresas de fora de Pernambuco e também de outros países.

A contribuição dos cursos técnicos e profissionalizantes

Correndo por fora durante esse período, Merval Jurema percebeu que existia um ambiente propício para a criação de um local para formação técnica – sem necessariamente ter ligação com as universidades. Um ponto ao qual os profissionais que já atuavam no mercado e as empresas que necessitavam treinar seus colaboradores pudessem recorrer sem precisar enviar as pessoas para treinamentos no Rio de Janeiro e em São Paulo. Foi da percepção dessa demanda que surgiu o Iteci.

“Nos primeiros anos do Iteci, inovamos com cursos na área de Tecnologia da Informação. Num contexto com muitas empresas, percebi que elas mandavam os funcionários para fazer cursos em São Paulo, mas que havia demanda no Recife para que os cursos fossem realizados aqui. A maior dificuldade era a questão da avaliação. Tinha gente que fazia o curso todo e na avaliação, reprovava. A pessoa pensava: já sou um profissional, não faz sentido ser avaliado por algo que eu já faço. Foi a principal luta”, relembra Merval Jurema. Os cursos eram frequentados principalmente por estatísticos, matemáticos e engenheiros que queriam ampliar os conhecimentos.

Merval explica que quase todos os cursos do Iteci tinham vocação para atender o mercado, inovar em aspectos que as empresas estivessem demandando. Essa experiência permitiu que, após voltar do pós-doutorado no Oregon (EUA), o professor criasse uma disciplina na UFPE com a proposta de proporcionar interação entre profissionais de várias áreas. “Alunos de informática, pedagogia, comunicação visual, administração. A gente ia desenvolver um produto que passa por fases diferentes. A universidade não estava e acredito que ainda não está preparada para essa integração. Na época, os alunos queriam fazer, mas a disciplina não contava para os créditos deles”, explica, ressaltando que essa questão desestimulava os estudantes.

Memória do Futuro - Ismar foi professor do Iteci, uma iniciativa de Merval.
Ismar foi professor do Iteci, uma iniciativa de Merval.

Futuro e exportação

Uma das estratégias planejadas para o setor de Tecnologia da Informação em Pernambuco, a exportação de softwares e soluções tecnológicas, não aconteceu da forma esperada. Hoje acontece mais frequentemente para outros estados do que para outros países. Isso porque o mercado interno é tão grande que costuma absorver os produtos e serviços desenvolvidos no País.

“Até os anos 1980 e talvez uma parte da década de 1990 os profissionais de TI estavam nas empresas que eram usuárias de informática, desenvolvendo soluções para as suas próprias empresas. A partir do surgimento do polo de Tecnologia da Informação, com empresas produtoras de TI, o sonho da exportação, com o (projeto) Softex 2000, começa a surgir a importância da empresa produtora de TI para exportação para fora de pernambuco”, lembra Ismar Kaufman.

O empresário reconhece que, na atualidade, outras questões se apresentam, com a concorrência de um mundo globalizado e interconectado – onde pequenas empresas de várias partes do mundo já surgem competindo entre si. Ismar defende que, para competir nesse mercado, a educação tecnológica também precisa ser “tecnologizada”:

“Essa coisa de conectar mais a educação ao mercado, ou permitir que a educação transforme o mercado, também tem a ver com permitir que o mercado transforme a educação”.

Para ele, essas interseções também devem estar na educação sob demanda e na capacidade de educação multidisciplinar. “Aquela coisa que parecia incipiente hoje é cada vez mais aceita por todo mundo. A gente tem que começar a trabalhar com currículos que não sejam ou isso ou aquilo, mas que sejam muito mais amplos e interativos com a capacidade de criação e uso que as pessoas têm no dia a dia”, afirma o empresário.

Para Merval, o processo de mudanças rápidas em que vivemos já está afetando as profissões e é preciso adequar a formação profissional para habilitar as pessoas para esta nova realidade. “A perspectiva é que muitas profissões que existem hoje não existam mais. O mercado vai mudar, está tudo muito integrado. Você hoje está satisfeito com o mercado, chega um cara de fora e tudo muda. As empresas estão todas se automatizando. É preciso adequar os cursos para isso que está vindo. Ser mais treinado e mais habilitado para essas mudanças”, conclui.

 


Assista a um compacto da entrevista com Jaime Galvão, Ismar Kaufman e Merval Jurema

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