Após start ambicioso há duas décadas, mercado de games vive mudança de fase 

André Araújo, Érica Ferrer e Geber Ramalho foram os convidados do Memória do Futuro sobre Games. Fotos: Alcione Ferreira

O mercado de jogos eletrônicos é eclético e abrangente. Existem jogos para computador, smartphone, tablet, consoles, entre muitos outros. Os desafios podem ser simples ou complexos. Em comum, está uma paixão que, em 2020, deve movimentar US$ 143,5 bilhões no mundo, segundo o Panorama da Indústria Brasileira de Jogos Digitais, levantamento feito pelo BNDES. 

O Brasil ocupa atualmente nesse cenário a 13ª posição no ranking mundial e o 2º lugar na América Latina. No País, o Recife é a quinta cidade entre as mais representativas na produção de games, atrás de Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Porto Alegre.

Para debater o setor em Pernambuco, o Memória do Futuro convidou Geber Ramalho, professor do Centro de Informática da Universidade Federal do Estado (UFPE), Érica Ferrer, gerente de negócios internacionais da Manifesto Games e vice-presidente da Associação de Empresas Desenvolvedoras de Pernambuco, além de André Araújo, gerente de inovação e empreendedorismo do Núcleo de Gestão do Porto Digital. O trio percorreu o início da estrada que levou a capital pernambucana a se firmar no mercado de games nacional (e mundial) e os rumos desse negócio sempre promissor.

A dura jornada do pioneirismo

Um dos pioneiros da área no Estado, Geber Ramalho lembra que as primeiras iniciativas com foco em desenvolver jogos nasceram em 1998, ou seja, 22 anos atrás. A primeira empresa a enveredar pelo caminho dos games foi a Art Voodoo. No entanto, o negócio não decolou. Naquela época, as tecnologias não eram tão desenvolvidas como hoje e até mesmo o acesso à internet era limitado, o que dificultava a execução de jogos eletrônicos muito complexos. Também não havia cursos de formação com foco em games, ou seja, os profissionais não eram qualificados, especificamente, para este setor. Somente por volta dos ano 2000, o negócio ganhou corpo. Foi neste ano que, na UFPE, houve a criação da primeira disciplina de desenvolvimento de jogos da América Latina.

Geber Ramalho viveu o início do processo de formação do mercado de Games no Recife

Geber e André lembram, inclusive, que ao saber da criação da disciplina voltada para games, e já de olho na crescente reputação do Porto Digital como parque tecnológico, a Motorola entrou em contato para a realização de um projeto. Na época, a empresa planejava uma mudança de paradigma na fabricação de celular e queria inserir jogos nos aparelhos.

“A Motorola veio, inicialmente, para fazer projeto de Lei de Informática. O primeiro foi de games e o gerente do projeto era Haim Mesel, que hoje é do Criatec, mas que fundou comigo a Meantime. A Motorola depois ficou muitos anos aqui e já investiu dezenas de milhões de reais no Centro de Informática e no Cesar para fazer outras coisas que não têm nada  a ver com games, mas o começo da conversa foi games”, conta Geber Ramalho.

A prova de que a qualificação profissional era o start que o mercado local precisava para subir de nível. Também foi no início dos anos 2000 que surgiram empresas como a já citada Meantime, que desenvolvia jogos para celulares, Preloud e Playlore. Esses empreendimentos já não existem mais, no entanto, foi a partir da iniciativa deles que outras empresas cresceram e seguem atuando até hoje de Pernambuco para o mundo, como a Joy Street e a Manifesto Games. Outra empresa nascida no início dos anos 2000 foi a Jynx Playware, da qual André Araújo foi um dos fundadores, e segue no mercado até os dias atuais.

Os “joguinhos” cresceram

Hoje o Estado conta com a Associação das Desenvolvedoras de Jogos de Pernambuco (Playnambuco), com dez empresas associadas. O grupo faturou R$ 18,5 milhões em 2019, contra R$ 13 milhões em 2018. Juntas, as desenvolvedoras empregam 238 profissionais. No Brasil, segundo o relatório do 2º Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais, financiada por meio de acordo de cooperação técnica entre o Ministério da Cultura, a Agência Brasileira de Cooperação e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), foram identificadas, no início do ano passado, 375 produtoras de jogos digitais – uma expansão de 182% em relação ao primeiro censo, elaborado em 2014.

André Araújo foi uma dos criadores de uma das primeiras empresas de Games do Estado, a Jynx

A expansão do número de desenvolvedoras de games é fruto de muito trabalho, quebra de barreiras e criatividade das pioneiras. A Jynx, por exemplo, surgiu como plano de negócios de uma disciplina de empreendedorismo que ficou tão bom a ponto de se tornar um produto real. Segundo conta André Araújo, a proposta inicial não era criar uma empresa, mas sim um jogo: o FutSim. O game era uma plataforma de administração de times de futebol, hoje uma funcionalidade dentro de jogos mais sofisticados, como o FIFA. 

“A gente criou a Jynx para desenvolver o Futsim, virou uma unidade de negócio do César, recebeu aporte de um investidor. Posso dizer com alguma segurança que em games nós fomos os primeiros a receber investimento de um investidor-anjo”, relembra André Araújo.

André ainda pontua que o caminho entre idealizar e criar o produto não foi simples. “A gente se lascou para desenvolver porque poderia ter lançado ele muito mais simples, mas passamos três anos, torramos tudo que a gente tinha e não tinha, para desenvolver um jogo ultracomplexo. Eu lembro que a gente passou de um milhão em linhas de códigos, criou um monte de metodologia, tecnologias para desenvolvimento de jogos”, ressalta Araújo. A iniciativa durou cerca de cinco anos, mas a relação entre o número de assinantes do game e os custos para mantê-lo não era economicamente sustentável. Para evitar que histórias de potenciais negócios de sucesso não prosperassem, surgiu a iniciativa parceira do Cesar batizada de Jorge (Jogos Oriundos do Recife Gerados com Excelência).

Ambiente de cooperação ajuda

A partir do desejo mútuo de fazer as empresas desenvolvedoras de games progredirem, criou-se um entrosamento entre os atores que participavam dessa cadeia. Geber e André pontuam que “empresas nasceram dentro de outras empresas” e isso gerava um ambiente de negócios saudável, a ponto de um empreendedor repassar trabalhos para outros. A união permitia que as empresas pudessem partilhar licenças e infraestrutura – tanto de hardware como de software, que na época eram muito caras para serem bancadas apenas por uma empresa de pequeno porte, como as que surgiam. 

Érica Ferrer é vice-presidente da associação dos desenvolvedores do Estado, a Playnambuco

Na visão de Érica Ferrer, esse ambiente saudável persiste duas décadas depois, principalmente pelo fato de que as empresas estão centralizadas no parque tecnológico do Recife. Isso possibilita proximidade e até encontros casuais. Érica também observa que é a partir desse ecossistema parceiro que as empresas de games têm conseguido resistir, já que, segundo ela, esse tipo de indústria possui ciclos em que algumas empresas acabam morrendo, inevitavelmente. 

“Tem gente que não sabe o que é Playlore, Meantime, Jynx. E aí depois continua outro ciclo, mas eu acho que agora a gente está um momento de maturidade, que não vai ter mais essa baixa, ninguém vai deixar isso acontecer com as empresas que estão começando hoje e as que se mantém”, analisa Érica.

Parte do desafio de se manter na indústria de games no Brasil e, em especial, em Pernambuco, é a eterna luta contra grandes estúdios que possuem mais capital financeiro e humano em outros Países. 

“Você sempre quer fazer um jogo que você quer jogar, só não entende que esse mesmo jogo tem uma equipe de 200 pessoas nos Estados Unidos fazendo e você quer fazer aqui com cinco pessoas. Além disso, há uma questão que é escolher entre fazer o jogo dos sonhos do desenvolvedor ou criar games simples, que possam viralizar, e que acabam lucrando mais e com menos esforços”, ressalta Érica.

A empresa Manifesto, que tem mais de 15 anos no mercado, foi uma das que conseguiram balancear essas questões. Érica Ferrer conta que de início a ideia era desenvolver games complexos, mas que se tornaram caros de produzir e muitas vezes não tinham grande penetração entre os jogadores. No entanto, houve um momento de virada de chave em que a Manifesto passou a produzir games mais simples e, partir de uma parceria com o site de jogos online (Miniclip), alguns dos games criados pela empresa ganharam o mundo. “Depois disso, a gente teve um momento de trabalhar com sócios para exportar serviços de desenvolvimento para outros estúdios fora. A partir de 2011, mais ou menos, vieram clientes grandes, como Disney, Seaworld e Zynga, com a FarmVille. Fazer serviços para fora ajudou bastante a gente com os processos internos, a melhorar documentação, disciplina, organização de códigos, de artes, de documentos, de tudo”, relata.

O caminho do outsourcing

Desde as primeiras iniciativas até hoje, muito já aconteceu e houve uma revolução no mundo dos games. Hoje também é muito comum que as empresas locais trabalhem com outsourcing, terceirizando mão de obra para elaborar partes de jogos que são lançados por grandes empresas internacionais e jogados por milhões de gamers. Caso do Fortunite. A Manifesto é uma das que adotam a modalidade, assim como outra grande empresa local, a PUGA Studios, além de muitas desenvolvedoras no Brasil. 

André relembra as dificuldades de empreendedor no mercado de jogos a partir do Recife para o mundo

Esse caminho, porém, é considerado como muito pragmático por André Araújo. Ele acredita que ainda é preciso investimento para que empresas com ideias mais autorais nasçam no ecossistema pernambucano. 

“O pragmatismo já chegou para quem é experiente. Um monte de gente fazendo outsourcing aqui. Isso já é um reconhecimento de que não é tão trivial como todo mundo acha. É preciso a gente criar um ambiente mais confortável. É um desafio muito grande que a gente tem para os próximos anos”, ponderou André.

O assunto investimento, inclusive, é consenso entre os entrevistados. Érica afirma que através da associação Playnambuco, recursos têm sido buscados através de fundos governamentais para impulsionar pequenas empresas. “Coisa de R$ 50 mil, R$ 100 mil, para um pequeno empreendedor ou para quem tem duas ou três pessoas começando uma empresa faz toda diferença e pode significar um maior número de empresas daqui a três, cinco anos, por exemplo”, pontua. Geber, por sua vez, mostra-se preocupado com a falta de mão de obra especializada. “Na área de game falta mais gente de arte hoje nas empresas do que de computação, entendeu? Porque em alguns jogos você chega a ter 15 artistas para um cara de programação”, ressaltou.

Érica e Geber defendem que para a evolução do mercado depende de qualificação profissional

 

Desafios e futuros do negócio de games

A facilidade de jogar nas plataforma de download, por outro lado, é um tema que anima os debatedores do Memória do Futuro. Eles lembram que nos primeiros jogos, com a internet ainda insuficiente, era difícil até de cobrar pelos games. Hoje, com lojas virtuais, tem sido muito mais simples submeter um jogo para que o usuário experimente de forma gratuita e, em seguida, consiga transformar essa experiência free num produto adquirido e com conteúdo premium. Se o produto não tiver boa aceitação, ele volta a ser elaborado. Geber lembra uma situação na universidade em que uma aluna disse ser muito difícil trabalhar no negócio descartável: 

“E hoje a gente trabalha muito nessa lógica. Lançam um produto para ver se tem aceitação, se não tem volta. Estou preocupado com o comércio. Olhe no meu olho e diga se você vai ficar mais feliz jogando um jogo que você gosta de jogar ou sabendo que tem três, quatro, cinco, dez milhões de pessoas jogando o jogo que você fez, nem que seja de graça?”, conta o professor.

A monetização, inclusive, é um dos desafios das empresas desenvolvedoras de games no Brasil e no mundo. Especialistas da área de tecnologia opinam que promover e distribuir os jogos deve ser o foco das empresas nos próximos anos. A partir do momento em que estúdios lançam novos títulos, alcançando mais visibilidade, diferenciar-se no mercado se torna cada vez mais difícil. Por isso, saber vender os games tem se tornado questão de vida ou morte para as desenvolvedoras.

Vale lembrar, porém, que o mercado de games não se resume ao entretenimento. No Brasil, das 375 empresas na ativa, 77% produzem jogos para divertimento e 42% apostam em produtos educativos. Outro dado relevante é que, de acordo com o 2º Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais, divulgado em novembro de 2018 pelo então Ministério da Cultura (MinC) e pela Unesco, dos 1.718 jogos desenvolvidos entre 2016 e 2018 no País, 51% eram educativos. O crescimento só reafirma que a indústria de games não está para brincadeira.

Confira um compacto de como foi o bate-bapo entre André Araújo, Érica Ferrer e Geber Ramalho para o Memória do Futuro:

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