Rede Nacional de Pesquisa pavimentou o caminho da internet no Brasil

Sérgio Rezende, Lúcia Melo e José Carlos Cavalcanti debatem a evolução da RNP. Fotos: Alcione Ferreira

Pioneirismo é a melhor definição para o que foi a implantação da Rede Nacional de Pesquisa (RNP) no Brasil. Quando as pessoas ainda dependiam de cartas e telegramas para trocar comunicações oficiais, foi criada uma rede pensada para interligar instituições de pesquisa, como as universidades. O ano era 1989, um período em que a internet era praticamente desconhecida no mundo e ainda não tinha chegado em terras brasileiras. Neste momento, o então Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) criou o projeto que tinha como objetivo de construir uma infraestrutura nacional de rede de internet para o âmbito acadêmico. E Pernambuco, como era de se esperar, já estava no meio dessa história. 

Para falar sobre esse projeto que entra em sua terceira década, o Memória do Futuro convidou o físico e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Sérgio Rezende, que já atuou como ministro da Ciência e Tecnologia. Além dele, a pesquisadora titular aposentada da Fundação Joaquim Nabuco Lúcia Melo, que foi, por duas gestões, secretária de Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco. Também participou do bate-papo o engenheiro civil José Carlos Cavalcanti, integrante do primeiro Comitê Gestor da Internet do Brasil.

O trio conversou sobre como a RNP foi criada, as dificuldades de interligar universidade de diversos Estados, inclusive com conexões além das fronteiras brasileira. Algo que hoje, com a internet de alta potência e a facilidade de acesso através de aparelhos com Smartphones, parece simples, mas na verdade foi um marco entre o fim da década de 80 e o início dos anos 1990. Os estudiosos ainda comentaram sobre como a RNP mudou de função a partir do momento que a internet comercial se consolidava no Brasil. E todos se mostraram preocupados em como as redes estão sendo usadas para fazer o mal, ao invés de potencializar ações positivas.

Because It’s Time to NETwork

A conversa teve início com um resgate no qual Rezende conta que a história toda começou quando, em 1984, ele participava de um evento internacional e uma física chamada Milly Jersey lhe falou da Bitnet. Na época ele não sabia do que se tratava, mas depois que a colega lhe explicou entendeu que era algo sobre trocar informações entre computadores. Essa transação era pioneira, já que naquela época, segundo ele relembra, para se comunicar com outros colegas de trabalho era necessário trocar correspondências como cartas:

“Nós passamos a poder nos comunicar com resto do mundo por mensagem. E passaram poucos anos até que veio então a internet. Não era só mensagem, poderia então trocar informação de imagem e tal”, comenta Rezende. 

Em tempo, a Bitnet (“Because It’s Time to NETwork” ou “Because It’s There Network”),  era uma rede remota que foi criada em 1981 a partir da ligação entre a Universidade da Cidade de Nova Iorque e a Universidade Yale. A conexão visava proporcionar um meio rápido e barato de comunicação para o meio acadêmico. A Bitnet chegou a alcançar mais de 2.500 universidades e institutos de pesquisa em todo o mundo, inclusive no Brasil.

Rezende lembra a evolução na forma de se comunicar desde a criação da Bitnet

Rezende avalia que entre a chegada da Bitnet e a evolução da internet que temos hoje, o então Ministério da Ciência e Tecnologia teve importante papel, pois entendeu a potencialidade daquela conexão e logo criou a RNP. “Inicialmente não era internet, era Rede Nacional de Pesquisa com a Bitnet. Isso foi em 1989, mas aí rapidamente por conta a evolução da tecnologia a comunicação foi ficando mais rápida, por causa da microeletrônica, da fibra óptica, do laser, e nós chegamos então na situação que estamos hoje”, lembra.

Da academia para todos

Para Lúcia Melo, a criação da RNP tem um papel transformador, principalmente por ter saído da academia e atingido a vida das pessoas. “A RNP é introdutora dos serviços avançados no Brasil”. A rede nacional de pesquisa é conhecida, inclusive, por ter implantado o primeiro backbone para a chegada da Internet no Brasil. Foi através dela que se criou uma espécie de espinha dorsal que interligava os centros acadêmicos. Em 1992, a RNP tinha uma rede alcançando dez Estados e o Distrito Federal. 

Três anos depois, com a internet comercial aportando no Brasil, a RNP estendeu seus serviços de acesso a todos os setores da sociedade. Nesse período, a rede acadêmica brasileira, chamada de Rede Ipê, passou por diversas inovações tecnológicas. Lúcia destaca que era imperativo crescer a abrangência do projeto:

“Quando a RNP começou a avançar era claro que não podia ser um projeto só para Rio, São Paulo e Minas. Tinha que ser uma coisa nacional.” 

Ela conta que, em 1992, foi preciso peregrinar pelas capitais do Nordeste para explicar o que era, convencer, chamar as empresas locais, chamar as universidades locais para que eles compreendessem. A pesquisadora lembra ainda que por causa da criação de um ponto de conexão da RNP em Pernambuco, por meio do Instituto de Tecnologia de Pernambuco (Itep), foi responsável por interligar a rede mais Estados do Nordeste como a vizinha Paraíba. Hoje, em seu portal na internet, a RNP resume sua história dizendo: “Ajudamos a trazer a internet para o país para atender aos anseios da comunidade acadêmica. Hoje, continuamos a contribuir para a evolução da internet no Brasil e no mundo”. 

Lúcia orgulha-se de ter feito parte do movimento de inserção da RNP no Brasil

RNP abre caminho para a internet

Pouco tempo depois da primeira RNP ser instalada e começar a funcionar, a internet chegou ao Brasil e forçou a rede se modernizar. Isso acontece por volta de 1995 e, a partir de então, a RNP passa a ter um papel de fiscalizador do que ia acontecendo com a web brasileira. A história conta que foi neste momento que inúmeras empresas fabricantes de bens de informática passam a oferecer apoio concreto, fornecendo equipamentos, software e financiando atividades diretas do projeto. Entre essas empresas estão Compaq, Equitel, IBM, Philips e outras.

Com esse suporte a RNP cria um centro de segurança de redes e passa a apoiar a consolidação da internet comercial no país. Para gerar popularização das redes, a RNP passa por uma redefinição de seu papel, estendendo seus serviços de acesso a todos os setores da sociedade, não apenas aos acadêmicos. José Carlos Cavalcanti relata que, neste ponto, a rede chegou ao estágio de mostrar às pessoas os serviços que poderiam ser oferecidos à população, facilitando atividades do cotidiano, como o correio eletrônico. 

José Carlos reforça a importância da infraestrutura tecnológica por trás da evolução da rede nacional de pesquisa

Segundo José Carlos, a RNP foi essencial nessa camada de infraestrutura, com cabos, torres, conexões, mas também porque era preciso transmitir para as pessoas o que eram os conceitos por trás dessa novidade tecnológica e como isso afetaria o dia a dia da população. “Precisávamos propagar o conceito das redes de computadores, mas as pessoas não tinham uma forma de discutir conosco, porque, se você fosse para o Ministério das Telecomunicações, eles só discutiam infraestrutura; mas, em cima das redes, tem uma outra camada que é a camada dos serviços”, explica José Carlos.

Ciência básica deu asas à tecnologia

O físico Sérgio Rezende pondera que não é possível contar toda a história da RNP ou  mesmo da internet sem antes falar de ciência. “Muita gente acha que as coisas caem do céu, de repente aparece um telefone, uma comunicação, mas isso é ciência básica e é financiada pelo Estado”. Ao dizer isso, Rezende relembra que as máquinas não nasceram com acesso à internet, com softwares modernos e hardwares potentes e cheios de memória para armazenar todo tipo de conteúdo. 

O processo de evolução foi lento e custou caro. Os investimento, na maior parte das vezes, começava com iniciativas públicas até que chamavam a atenção das empresas privadas que passavam a fazer seus próprios testes e aportes financeiros. “O primeiro computador que eu utilizei na década de 1960 era um computador só de válvula que ocupava uma sala enorme, muito limitado, a memória central dele tinha 16 quilos bites”, diz. Mas décadas depois estavam os estudiosos das ciência se mobilizando para encontrar forma de como transferir arquivos por microondas. Hoje usamos a banda larga, como gigabytes de potência, mas o caminho por trás da tecnologia, na opinião de Rezende, nem sempre é lembrado.

Rezende destaca o papel do físico Tim Berners-Lee na criação da internet

Ele lembra ainda que a primeira internet foi feita também por um físico, Tim Berners-Lee, que conseguiu fazer com o que computadores se comunicassem, “e isso era exatamente o que precisava para internet”. Foi ele criou o termo World Wide Web, mas, na visão de Rezende, Tim Berners-Lee praticamente não é mencionado. “Acho que ele é um grande candidato a ganhar o prêmio Nobel”, observa Rezende.

Internet cresce e precisa de cuidados

Após relembrar o que deu início à RNP e como essa rede abriu as portas para chegada e ampliação da internet como conhecemos hoje, os três estudiosos se mostram preocupados com o rumo que ela vem tomando. Para Sérgio Rezende é gratificante ver como as redes de telecomunicações cresceram, a tecnologia foi impulsionada, e agora as pessoas se comunicam de onde estiverem com qualquer lugar do mundo. No entanto, ele enxerga que o “uso maléfico dessa enorme capacidade de comunicação”:

 “As pessoas conseguem divulgar mentiras enormes e essa é uma preocupação. Vai ser muito importante que a comunidade se debruce sobre essa questão para que a tecnologia seja usada de forma prudente e não para o mal.”

Também em alerta sobre o tema, Lúcia Melo defende que sejam criadas barreiras e até mesmo formas de controle do que é produzido no espaço cibernético. Segundo ela, não se trata de tolher a liberdade de acesso, mas de haver uma maior fiscalização dos conteúdos gerados para que não sejam nocivos. “Acho que esse é o desafio principal que a gente tem para o futuro”, vislumbra Lúcia. 

Lúcia Melo defende que sejam criadas barreiras para evitar que a internet seja usada para mal

Já para José Carlos, a partir do momento que a internet fazer parte do cotidiano das pessoas e foi responsável por revoluções, ela mesma precisa passar por mudanças. “Os desafios daqui para frente são mais complexos porque a gente criou a internet essencialmente para transferir informação”, diz ele. O estudiosos completa: “Precisamos de uma outra evolução [da internet] para o que alguns estão chamando da web 3, que é o estágio onde a gente vai ter que ter redes que transmitam valores”, resume José Carlos.

Negócios e revolução na web

Sérgio Rezende lembra, inclusive, que, atualmente, as empresas mais valiosas do mundo são ligadas à web. As três primeiras são Apple, a Amazon e a Microsoft: todas com valores que ultrapassam os US$ 500 bilhões no mercado internacional, segundo levantamento realizado pela Economatica, provedora de informações financeira. “Essa combinação de ciência básica, que muitas vezes é esquecida, com tecnologia e com empreendedorismo é que faz com o que nós tenhamos essa internet nos dias de hoje”, observa.

Lúcia Melo complementa falando sobre como as empresas têm investido, e tido retorno financeiro, ao explorar os dados digitais dos usuários da internet. Ela ainda comenta que o brasileiro precisa usar melhor essa ferramenta ao invés de ser campeão no consumo de informações via redes sociais. “Internet não é só usar smartphone e assistir Netflix”, reclama.

Para José Carlos, a internet, se usada corretamente, deverá impulsionar ainda mais os negócios no mundo inteiro

As preocupações da pesquisadora também são chanceladas por José Carlos, que compara o atual momento da transformação digital à revolução industrial:

“Essa revolução vai ser muito mais profunda porque ela vai modificar hábitos, comportamentos, formas de lazer, forma de aprender, formas de trabalhar e eu creio que a gente tá tendo muita dificuldade para passar isso para sociedade”. 

Confira um compacto de como foi o bate-bapo entre Sério Rezende, Lúcia Melo e José Carlos Cavalcanti para o Memória do Futuro:

One Comment

  1. Excelente, informativo e que a Internet caminhe para desbravar um mundo melhor que o atual.

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