Capital empreendedor: um caminho que precisa ser ampliado

Yves Nogueira, Ana Luiza Ferreira e Haim Mesel debatem os investimentos em empresas de tecnologia

Entre o fim da década de 1990 e o início dos anos 2000 — quando empreender no ramo da Tecnologia da Informação não estava tão em alta como hoje —, conseguir investimentos para colocar ideias em prática era uma barreira difícil de enfrentar. Cerca de 20 anos depois, o cenário é mais favorável e já existem fundos bilionários de investimentos em startups. A popularização dessas empresas de base tecnológica, como antes eram chamadas as startups, fez crescer o número de investidores, a ponto de “faltar” boas ideias para receber os aportes. Como equilibrar esta equação?

A resposta balizou esta edição do Memória do Futuro, com Ana Luiza Ferreira, Haim Mesel e Yves Nogueira, que reuniram-se para um bate-papo sobre capital empreendedor. Eles viveram os obstáculos de diferentes maneiras, mas todos acabaram se envolvendo com o mundo dos investimentos de risco em empresas de TI, especialmente em Pernambuco. “Meu primeiro contato com esse mundo foi em 2003, quando eu estava do outro lado da mesa. Eu tinha o projeto para criar uma startup, não tinha grana, tinha que buscar alternativas e terminou que nós encontramos esse mundo do capital empreendedor”, relembra Haim Mesel, hoje sócio fundador da Triaxis Capital, uma das principais gestoras de Venture Capital do Brasil.

O início também foi complexo para Yves Nogueira, investidor líder do núcleo pernambucano da Anjos do Brasil. Ele já empreendia desde 1994, mas foi no mestrado em Ciência da Computação, entre 2007 e 2009, que começou a se aprofundar no mundo do capital empreendedor. É tanto que o tema do trabalho de conclusão de Yves foi “Fontes de financiamento para empresas de base tecnológica”. Hoje Yves é um dos principais investidores-anjo em Pernambuco, porém, ainda na pele de empreendedor, Nogueira aproveitou suas pesquisas para entender como esse modelo de investimento em empresas iniciantes funcionava:

“As fontes de financiamento que tínhamos eram pesadas, eram duras para o empreendedor. Tinha o cheque especial da pessoa jurídica, conta garantida dos bancos tradicionais… e o produto ‘mais inovador’ que se tinha era a antecipação dos recebíveis.”

Mas mesmo arriscando se endividar para financiar sua ideia de negócio, o empreendedor de tecnologia daquela época precisava lidar com a desconfiança dos órgãos que garantiam os empréstimos, por exemplo. Segundo Ana Luiza Ferreira, sócia da consultoria Guimarães Ferreira e gestora do Fundo de Venture Capital Criatec 2 para o Nordeste, o mercado de investimento em tecnologia esbarrou na falta de amadurecimento das garantias envolvidas: “Cabeça de gado é aceita como garantia, mas cabeça de gente não é. Isso me incomodava muito.” 

Com essa visão, Ana Luiza decidiu enveredar para o ramo da TI e buscar investimentos que pudessem garantir o nascimento, ou crescimento, das empresas do setor. “Tinha um desejo muito grande de me aproximar a essa indústria que a gente entende como a indústria do futuro, de tecnologia, de inovação”, afirma ela quem em 2016 assumiu o fundo Criatec 2. Em 2018, segundo dados da Associação Latino-americana de Private Equity e Venture Capital, o fundo que ela gerencia captou R$ 186 milhões e o montante foi investido em 36 startups.

Ana Luiza se incomodava com a falta de apoio às ideias dos empreendedores digitais

Mas, entre o início, aos trancos e barrancos, e hoje — momento propício para as empresas iniciantes em TI —, há uma série de questões político-econômicas que fizeram a mudança da chave no setor acontecer. Entre elas estão a ampliação do Fundo Constitucional de Financiamento (FNE Inovação), do Banco do Nordeste do Brasil (BNB), a criação do Fundo Criatec, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), entre outras possibilidades de buscar investimento com menos garantias, porém com juros e parcelamentos mais acessíveis.

A mudança mais significativa, porém, foi a disponibilidade de investimentos por meio de fundos, como o próprio Criatec, e editais como o da Finep – Financiadora de Inovação e Pesquisa, empresa de fomento à ciência, tecnologia e inovação do governo federal, que concede recursos reembolsáveis e não-reembolsáveis. Segundo Yves Nogueira, 2006 foi o primeiro ano em que uma startup do Porto Digital conseguiu um financiamento a juros zero, via Finep. O aporte foi feito por uma empresa que ele mesmo encabeçava, a Kurier, através da. “A gente pegou, na época, algo em torno de R$ 900 mil para ser pago em 100 parcelas sem juros. Isso não existia na época, foi um programa do então ministro de Ciência e Tecnologia, o pernambucano Sérgio Rezende.”

Fundos já consolidados fortalecem o setor

Investir em inovação se tornou algo tão importante que, em 2018, somente o Banco do Nordeste aportou R$ 750,53 milhões em projetos. As aplicações utilizam recursos do FNE Inovação e representam crescimento de 33,4% em relação ao aplicado em 2017. Para Haim Mesel, quanto mais investidores, mais fortalecido o ecossistema de TI em Pernambuco. “Quando nós olhamos para outros clusters de inovação que tiveram sucesso ao redor do mundo, vemos que em todos eles têm uma forte presença dos investidores. Então é um pilar importante que precisamos construir aqui no nosso Estado”, disse Haim. 

Haim acredita que a presença de investidores no ecossistema da Tecnologia da Informação é um dos pilares para o desenvolvimento

No entanto, assim como existem diversos perfis de empresas, desde as mais jovens até aquelas que já estão estabelecidas no mercado, o ramo do investimento de risco também tem suas variáveis. Em linhas gerais, para startups que estão dando seus primeiros passos, existem os investidores-anjo, que são aqueles que fazem pequenos aportes em muitas empresas, já que a taxa de sucesso desses empreendimentos de faixa inicial é de apenas 30%.

As empresas que já possuem algum caminho traçado, tempo de mercado, público consumidor, podem contar com investimentos dos chamados Venture Capital. Nessa fase as empresas são escolhidas com mais critério e o aporte feito também é mais vultuoso. Entre os dois patamares, há possibilidades como incubadoras e aceleradoras, mas, em resumo, pode-se dizer que existem essas duas realidades no mundo do capital empreendedor.

Essa diferenciação entre as fontes de financiamento, segundo Ana Luiza Ferreira, é algo que precisa ser melhor compreendido pelos empreendedores digitais:

“É melhor que você seja franco com alguém que está disposto a assumir o risco em conjunto. Se der certo, deu certo junto, vamos compartilhar esse lucro. Se der, errado estamos quites.”

Haim Mesel ainda completa: “O empreendedor estaria arriscando se estivesse pegando um empréstimo no banco e colocando o apartamento como garantia, não é esse o caso. Capital de risco não tem garantia.” Esse entendimento também é necessário para quem investe. Em negócios de risco, como startups, a taxa de sucesso é baixa para as fases iniciais. Já aquelas um pouco mais consolidadas convivem com o fantasma de que a maioria, 70% ou até mesmo 90%, não irá progredir. 

Yves alerta que os investidores devem entender que um empreendimento de risco não tem garantias

Por outro lado, quando esses negócios conquistam seus espaços no mercado, o retorno financeiro é exponencial. No caso dos investidores-anjo, a estratégia é ter um pool maior de empresas sendo aportadas, mas isso significa que o dinheiro investido não terão retorno. Yves alerta:

“Tem muito pretenso investidor-anjo que está querendo entrar nessa e a primeira pergunta é assim ‘qual é a garantia que tenho, quanto eu vou ter de resultado?’ Zero!”

É preciso ligar o motorzinho

Uma vez que muitas empresas morrem, é necessário que muitas outras nasçam. Novas ideias são bem-vindas no setor de tecnologia e os investidores estão ansiosos para ver esse número de startups crescer. Os convidados do Memória do Futuro, porém, pontuam que no ecossistema pernambucano, poucas empresas têm surgido, ou pelo menos, não na velocidade que o setor demanda. 

Com reuniões trimestrais para definir novos investimentos da Anjos do Brasil, por exemplo, Yves Nogueira conta que por vezes essas reuniões acabam com o questionamento sobre a necessidade de novos negócios a serem aportados. “A gente passa três meses de uma reunião para outra e mesmo assim ainda dá trabalho pra conseguir aquelas cinco ou seis que vão ali se apresentar”, pontua.

Gerente de um fundo milionário de investimento, Ana Luiza faz um apelo para que o setor de TI seja mais ágil na formação de novas startups. “A gente precisa ligar o motorzinho. Quando passa o ano são apenas alguns cases a mais, às vezes tem ano que a gente se pergunta ‘Quais foram as empresas que, esse ano, são as empresas ‘revelação’?’ Precisa, ano após ano, ter muito mais empresas disputando esse prêmio. Essa turbina precisa ligar.”

Investimento além do dinheiro

Os investimentos nos negócios de tecnologia vão além do dinheiro. Claro que, para muitos empreendedores, conseguir um investidor é uma necessidade para manter a sua startup viva. Outras vezes, ter um investidor com know-how é ainda mais importante, já que ele pode sugerir caminhos diferentes para o negócio, conectar pessoas que podem potencializar a empresa. Os insights que essas pessoas podem dar valem muito mais do que dinheiro e podem acelerar uma startup.

Haim lembra que o aporte de um Venture Capital vai além das cifras investidas numa empresa

Na opinião de Haim Mesel, existem diversas formas de acelerar um negócio em TI que vão além do dinheiro. As gestoras de fundo pode oferecer caminhos alternativos. “Cada uma tem possibilidade de dar algum componente a mais como conhecimento de gestão, governança, conhecimento financeiro, networking, atração de executivos de peso para a startup. Tudo isso vai junto com o dinheiro do investidor de capital de risco. É por isso que a gente chama de smart money, que é um dinheiro inteligente”, exemplifica. E complementa:

“Trabalhos internacionais mostram que as empresas investidas por Venture Capital são mais lucrativas do que a média, crescem mais rápido e geram mais inovação”

Compliance nas startups

A partir do momento em que os investidores apostam alto nas startups e que gestoras de fundo têm possibilidade de orientar sobre conceitos primordiais no mundo dos negócios como governança corporativa e compliance, os novos empreendedores de TI têm entrado no mercado com um visão menos corrompida e buscando agir dentro da legalidade. Essa postura tem agradado Ana Luiza Ferreira, gestora do Criatec 2. 

Ana Luiza elogia o posicionamento das empresas de tecnologia no quesito compliance e enxerga isso como primordial para o setor

Segundo ela, quando passou a trabalhar no ramo no Brasil, teve uma grata surpresa ao se deparar com empresas em que fazia parte das premissas pagar 100% dos seus impostos, seguir à risca todos os direitos trabalhistas, valorizar seus funcionários, oferecer um ambiente adequado. “Acho que o fortalecimento dessa indústria da tecnologia da informação e da inovação como um todo também agrega à economia local nesse sentido de trazer um padrão de atuação elevado e que, na verdade, é básico e precisa ser cumprido”, comenta.

Neste tema, Yves complementa a questão e afirma que também é necessário debater compliance com os órgãos públicos, para que sigam as regras e efetuem em dias os pagamentos por serviços prestados pelas empresas. Na visão dele, a partir do momento em que uma fatura não é quitada em dia, a empresa prestadora do serviço pode ter seu planejamento financeiro comprometido. “Como é que a gente vai incentivar que uma startup forneça para um governo municipal, estadual, federal, quando ela não tem segurança nenhuma de que a cronologia de pagamento vai ser respeitada? O impacto que isso gera é que hoje o investidor simplesmente não quer ouvir falar de uma startup que vai focar em governo.” 

Qualificação e novos investidores

É nesse contexto de investimentos de altos valores, riscos, novas ideias, empreendedorismo, regras corporativas que surgem novos interessados em fazer parte da cadeia. Com a possibilidade de grandes lucros, empresários de outros setores tentam diversificar sua carteira de negócios e buscam informações sobre o mundo do capital de risco em tecnologia, setor promissor no Brasil e no mundo. Mas é preciso estudar, buscar orientações para garantir que as chances de sucesso sejam maiores do que as de fracasso. 

Esse movimento tem acontecido entre as tradicionais famílias empresárias de Pernambuco. De acordo com Haim Mesel, fatores como taxa de juros mais baixas fazem com pessoas com alguma verba guardada busquem realizar investimentos para potencializar seus retornos financeiros:

“Aquele dinheiro, que antes podia ficar parado lá no banco rendendo, deixa de render. Ou rende muito pouco. Então, o investidor vai ter que arriscar um pouco mais”

Haim complementa que, tradicionalmente, capital empreendedor é uma das possibilidades de investimento que lhe colocam num patamar de risco um pouco mais elevado, mas com a possibilidade de retorno também muito maior.

Segundo Yves, essa aproximação das famílias empresárias tradicionais do Estado com o setor de venture capital e investimento-anjo tem se intensificado ano após ano. E, em geral, são os integrantes da segunda geração, mas, principalmente, da terceira geração dessas famílias. “Eles entendem que virou um ativo interessante colocar pelo menos parte da liquidez da sua riqueza nesse tipo de ativo. Então, temos movimentos muito claros disso, como a contratação de Sérgio Cavalcanti, que era superintendente de um centro de inovação e está pilotando a iniciativa de inovação de um grupo como o Cornélio Brennand”, pontua.

Yves acredita que as famílias tradicionais de Pernambuco estão enxergando o capital empreendedor como opção de investimento

A questão, no entanto, é que para ser um investidor de sucesso nesse ramo não basta ter dinheiro à mão. É necessário conhecer o mercado e ter capacitação. Por se tratar de uma área diferenciada Ana Luiza, Yves e Haim concordam que é necessário unir qualificações nas áreas de tecnologia e finanças. Mas todo conhecimento extra pode ser um diferencial. Segundo Haim, trata-se de uma formação aprofundada e, ao mesmo tempo, generalista. “Tem uma formação financeira que tem que ser profunda, ela é vertical, sólida. Existe a necessidade também de uma formação generalista que ajude a compor, do ponto de vista de gestão, noções de direito societário, de relações humanas, de liderança. É um misto”, enumera.

Para Yves, no entanto, os próprios empreendedores que hoje jogam esse jogo serão os próximos potenciais investidores. “Talvez tenhamos que nos aproximar do pessoal da área acadêmica, para pensarmos que formação é essa, para multiplicar as pessoas que trabalham nesse mercado. Mas eu entendo que teremos uma próxima geração de empreendedores. Os empresários do nosso ecossistema, que venderem as suas operações, vão ficar capitalizados e, provavelmente, boa parte deles vai começar a retroalimentar esse sistema”, vislumbra.

Assista a um compacto da conversa entre Yves, Ana Luiza e Haim:

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