Multinacionais foram piorneiras na formação em tecnologia

Foto de um IBM da série 4300, lançado no fim da década de 1970.

Inovação e qualificação profissional foram os principais legados deixados pelas multinacionais IBM e Burroughs para o ramo da tecnologia em Pernambuco e no Nordeste. Com presença forte no Recife da década de 1970, época em que poucos entendiam sobre hardwares e softwares, as duas empresas trouxeram o que tinham de mais moderno para a capital pernambucana. A mão de obra para fazer manutenções, ou até mesmo operar os mainframes (os “cérebros eletrônicos”), porém, era um problema. Pensando em formar profissionais para a área de tecnologia, IBM e Burroughs  — que, no fim da década de 1980, se transformou na Unisys — ofereciam cursos gratuitos, nos quais os melhores alunos acabariam contratados como estagiários.

O primeiro curso de informática aqui da região foi na Federal (UFPE), em 1974. E, mesmo nessa primeira turma havia entre 50 e 60 pessoas. “Ou seja, quem treinava o pessoal eram as empresas, porque elas tinham interesse em ter quem operasse as máquinas delas. Então ajudaram bastante na formação de mão de obra”, relembra o consultor autônomo de TI Luiz Alcoforado, que, aos 19 anos, participou do treinamento da IBM e seguiu no ramo da tecnologia até os dias atuais. Hoje, aos 65, ele diz que seu “tesão” é por tecnologia.

Ele conta que não chegou a trabalhar para tais multinacionais, mas que era cliente delas, já que as duas eram as líderes do mercado de informática na época. “Eu comecei a trabalhar com informática em 1973, na época em que computador era confundido com IBM, Burroughs. O pessoal achava que a gente trabalhava para essas empresas. Mas, no meu caso ,apenas usava os equipamentos delas”, esclareceu Alcoforado.

Nomes reconhecidos no ramo da tecnologia, Jair Kitner, Márcio Waked e Paulo Valle já foram executivos em pelo menos uma das três empresas. O trio concorda que somente através dos cursos de especialização que as multinacionais ofereciam conquistaram conhecimento necessário para entender o mundo das máquinas. Afinal, segundo eles contam, a academia não dava conta de atender a demanda de jovens da época, que estavam sedentos por esse tipo de informação.

A Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), por exemplo, foi a primeira no Estado a ter um curso voltado para o mundo da informática. Em 1974, era criado o Departamento de Estatística e Informática, que oferecia bacharelado e pós-graduação em ciência da computação. Em 1983, separou-se de estatística, na forma do Departamento de Informática do Centro de Ciências Exatas e da Natureza, até receber o nível de centro acadêmico em 1999, há 20 anos. Nesse contexto, Jair Kitner, que passou no concurso da IBM aos 18 anos e hoje é executivo da Accenture, relembra o início da sua vida profissional:

“Quando eu entrei na IBM, em 1970, não sabia nem mesmo o que estava fazendo. Eu estudava engenharia elétrica na UFPE e não estava muito feliz com o curso”.

Ele conta que houve um concurso da companhia para programadores e, apesar de ter a menor ideia do que eles estavam falando, “IBM era um negócio legal” e eu foi. Entre 600 candidatos, ele e Luiz Alberto Cavalcanti foram contratados. “Segui fazendo engenharia, mas chegou um momento em que não consegui equilibrar os dois. Tempos depois eu entrei na Burroughs, que tinha mais flexibilidade de horário, e foi onde trabalhei com o mestre Eduardo Belarmino”, detalhou. 

Paulo Valle, que trabalhou por 32 anos na Unisys. Ele conta que a empresa veio para a região focada em utilizar a mão de obra local e criou, no Recife, um Centro de Desenvolvimento e Formação, em parceria com universidades. Na década de 1980, ela tinha um plano de seleção para formar analistas e programadores, buscando essas pessoas nos cursos de engenharia. Era uma espécie de especialização. Ao final do curso e do estágio, o que a Unisys não tinha capacidade de contratar, os clientes solicitavam esses candidatos. Paulo tinha apenas 23 anos quando entrou na companhia – que ainda se chamava Burroughs. Ele seguiu na então Unisys até cerca de quatro anos atrás, quando o escritório local foi fechado. Hoje, aos 59 anos, ainda atua no ramo da tecnologia.

Já para Márcio Waked, que passou 16 anos na Unisys, é certo dizer que tais formações capacitaram profissionais de “altíssimo nível”. “Não atribuo às multinacionais o início do processo do Porto Digital, por exemplo, porque isso notadamente foi a iniciativa local de algum visionários, empreendedores”, pontua Márcio. Contudo, ele reconhece que o conhecimento e o legado dessas grandes empresas foram uma importante contribuição, uma vez que foram formados profissionais que hoje ainda estão em atividades e grandes empresas. Waked que entrou na empresa aos 19 anos, quando ela estava em processo de mudança.

Waked ressalta a importância das empresas na capacitação de pessoal.

De acordo com os “ex-alunos”, os cursos ofereciam aulas como introdução à informática e ter esse tipo de conhecimento nas décadas de 1970 e 1980 era algo fora da curva. Saber operar máquinas que, para muitos, eram inacessíveis, os tornavam diferenciadas. Por causa disso, inclusive, eram remunerados com salários mais altos e progrediram na carreira de forma meteórica. Jair Kitner diz que gostava de chamar essa geração da qual fez parte de “informonautas”, já que, segundo ele, eram vistos como “pessoas de outro planeta”. Tanto que Luiz Alcoforado relembra:

“Era um conhecimento tão diferenciado para a época que, quando a gente chegava nas empresas, depois dos cursos de IBM e Burroughs, éramos um bando de meninos jovens, cheios de vontade, e com salários altos.” 

Ele, que chegou a ser gerente de informática da Compesa com apenas 24 anos, acrescenta que isso era motivo de olhares “meio tortos” dos que eram mais antigos nas companhias. 

Concorrência acirrada 

Embora a IBM fosse líder de mercado e uma empresa muito maior economicamente frente aos seus concorrentes, a Burroughs/Unisys conseguia competir de forma robusta no Nordeste brasileiro. Márcio Waked relembra que eram os dois principais players do mercado. Normalmente, as concorrências aconteciam com essas duas empresas. “Aqui no Nordeste existia um equilíbrio grande”, afirmou Márcio Waked. “Era praticamente um Fla x Flu”, brincou Alcoforado.

As duas empresas montavam os chamados mainframes, computadores de grande porte dedicados, geralmente, ao processamento de um grande volume enorme de informações. Logo, se você optasse por IBM, estava escolhendo software e hardware dessa empresa. Caso escolhesse Unisys, usaria as soluções dela também, e normalmente esta segunda tinha uma leve vantagem em programas destinados aos bancos.

Jair Kitner chama a atenção para o fato de que inovar via programação de computadores já foi muito mais desafiador do que é hoje. “Hoje você faz uma pesquisa no Google e em um segundo recebe milhões de resultados. Mas foi na Unisys que um homem chamado Belarmino criou um sistema que organizava grande volume de informações, como a relação de clientes de banco por ordem alfabética, ou por número de contas”. Ele ressalta que isso hoje parece simples, mas, naquela época, foi revolucionário, tanto que a Unisys usou de forma extensiva o modelo criado no Recife.

Entre as décadas de 1970 e 1980, os mainframes utilizados no Recife, produzidos pelas multinacionais, eram IBM/370, IBM 1130, IBM 4341 e o IBM 3031 — este último instalado apenas no Banorte. Pela Burroughs, e posteriormente Unisys, as máquinas eram B 500 B 6910 e posteriormente a Série A. Os modelos IBM/3 e a série 1000 da Burroughs, mais conhecida como 1800, já eram considerados minicomputadores. Tais equipamentos eram utilizados nas universidades e empresas de grande e médio porte. “Após a reserva de mercado, os servidores com tecnologia Intel foram chegando gradativamente”, lembrou Waked.

Legado (quase) esquecido

Hoje o Porto Digital, no Recife, é reconhecido como uma potência em inovação e tecnologia no País. No entanto, os “avós” dos jovens que hoje desenvolvem soluções tecnológicas por lá pouco são lembrados. Márcio Waked pontua: 

“Para as novas gerações já é um passado distante. Talvez nem saibam o que é a Unisys, ou que ela fez em Pernambuco. Já não conhecem a importância que essas multinacionais tiveram”.

Esse sentimento de que o passado foi esquecido também é nutrido por Luiz Alcoforado. Ela ressalta que, apesar de já terem deixado o mercado do Recife, as duas empresas ainda são forte no setor de tecnologia, mas poucos sabem disso. “Essas empresas estão meio escondidas. Hoje eu trabalho com uma equipe que tem média de idade de 30 anos e digo a eles que dentro de um disco que eles estão usando tem 50 patentes da IBM. Eles se surpreendem. Para eles, a IBM está morta”, lamenta Alcoforado.

Paulo Valle compartilha dessa visão e desenrolar dos acontecimentos. As multinacionais foram importantes na fase inicial (da tecnologia em Pernambuco), depois vieram as universidade e o próprio Cesar – Centro de Estudos Avançados do Recife e  o Porto Digital, já pegando essa vocação e dando continuidade. Mas, no final da década de 1990, elas deixaram de ser as mais importantes. “Nós ficamos mais independentes”, avaliou Paulo.

Multinacionais se reinventam e seguem no mercado

Fundada nos Estados Unidos em 1911, a IBM chegou ao Brasil em 1917, mas só se estabeleceu definitivamente em 1924. O Brasil, inclusive, foi o primeiro país a receber as operações da companhia fora do sua nação de origem. O Recife, por sua vez, foi uma das cidades brasileiras com filial da multinacional. Em 2003, o Porto Digital anunciou a chegada da IBM em seu parque tecnológico, no Bairro do Recife, onde está embarcada até hoje.

Já a Burroughs surgiu nos Estados Unidos, na década de 1970, para competir com a IBM. De acordo com reportagem do jornal americano The New York Times, em matéria publicada em 28 de maio de 1986, a Burroughs Corporation se fundiu à Sperry Corporation, em um esforço para criar um concorrente mais potente contra a IBM. Assim surgiu a Unisys, que segue viva ainda hoje, sendo uma empresa global de tecnologia da informação. Atualmente, no Brasil, sua sede está localizada no Rio de Janeiro e, há cerca de quatro anos, o escritório Recife foi fechado. A unidade funcionava no bairro do Pina, Zona Sul do Recife.

Paulo Valle conta que a saída do Recife foi uma mudança estratégica que veio do exterior, uma vez que a Região Nordeste, por diversas questões, não vinha atraindo grande contratos. “Desde a década de 1990, a Unisys começou a fechar as filiais menores aqui no Nordeste, o Recife foi a última há cerca de quatro anos, quando tinha um grande contrato com a Secretaria da Fazenda do Estado”, contou.

Para Márcio Waked, IBM e Unisys cumpriram seu papel aqui no Recife. Hoje esse protagonismo é compartilhando com muitas outras empresas, outras tecnologias, outras plataformas. “Agora existe uma enorme gama de soluções, bem diferente daquela época”, comentou Márcio Waked sobre a perda de força das multinacionais após tamanha importância nas décadas de 1970 e 1980.

O futuro em Pernambuco

O ecossistema de TI em Pernambuco tem sua qualidade reconhecida no Brasil e no mundo. Somente o Porto Digital é composto por cerca de 300 empresas. Esse sucesso é apenas o início, segundo Jair Kitner:

“Quando eu dizia para a diretoria da Accenture que era importante investir na mão de obra que era oferecida no Recife, brincavam comigo dizendo que eu só defendia aqui porque queria trabalhar mais perto de casa e sair dessa ponte aérea Rio de Janeiro/São Paulo. Agora que o investimento é realidade, já superou imensamente as expectativas mais positivas”. 

Luiz Alcoforado também acredita no potencial das pessoas envolvidas com tecnologia em Pernambuco: “Criou-se uma massa crítica muito boa, gente nova, cabeça aberta, com ideais, com formação para desenvolver novas tecnologias. Eu acho que o Estado está fazendo muito e tem muito mais a oferecer”, resumiu Alcoforado.

Deixe seu comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado.
Campos obrigatórios são marcados por *