Capitães do Porto

Fábio Silva, Valério Veloso e Francisco Saboya, ex-presidentes do Porto Digital, contam como entraram nesse navio e como o conduziram na travessia que já dura 18 anos

 

Memória do Futuro - Conversa entre ex-presidentes do Porto Digital
Fábio Silva, Chico Saboya e Valério Veloso relembraram o início de suas conexões com o polo tecnológico.

Um paulista, um paraibano e um pernambucano. A esta receita, adicione o improvável: o sucesso de um parque tecnológico de pretensões nada modestas no Nordeste brasileiro. Com ingredientes assim, não poderia ter havido tempero melhor para o Porto Digital, que acabou sendo conduzido à posição atual, entre os maiores ecossistemas de inovação do mundo. A história de embarques, navegação e desembarques desta nau foi tema da conversa entre Fábio Silva, Valério Veloso e Francisco (Chico) Saboya, ex-presidentes da entidade. A convite do Memória do Futuro, eles se encontraram no Laboratório de Objetos Urbanos Conectados (L.O.U.Co), um dos equipamentos do Porto Digital no Bairro do Recife, para contar as lembranças de suas jornadas e ousar prever as rotas do futuro.

O Porto Digital é uma organização social cuja história está documentada por Chico Saboya neste artigo, em que ele sintetiza todos os “comos” e “porquês” da trajetória do polo. Ninguém melhor do que Saboya para mostrar o caminho trilhado até aqui. Economista e empreendedor, ele capitaneou o parque por 11 prósperos anos. Para complementar a narrativa do ex-presidente, perguntamos aos convidados – inclusive ao próprio Saboya – como foi o início da relação deles com o empreendimento.

Primeira equipe do NGPD reunida no Marco Zero.
Primeira equipe do NGPD reunida no Marco Zero. Foto: Acervo pessoal de Fábio Silva (de amarelo, no centro).

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O primeiro a subir a bordo foi Fábio Silva, paulista radicado em Pernambuco desde 1993. Cinco anos depois de aportar em terras pernambucanas, ele era professor no Centro de Informática (CIn) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e já havia cultivado um relacionamento com quem movimentava o setor de tecnologia da informação no Estado: o Softex Recife e os inquietos Cláudio Marinho e Silvio Meira. O Cesar começava sua jornada e Fábio estava nela como diretor financeiro da instituição de pesquisa criada para reter talentos e solucionar problemas locais com tecnologia e inovação. Depois, Fábio seguiu para o Instituto de Tecnologia de Pernambuco (Itep). “A partir dali, começamos a desenhar um projeto que desaguou no Porto Digital, um projeto de futuro para Pernambuco, um parque tecnológico bastante diferente.” No simbólico ano 2000, quando muitos temiam ser o fim dos tempos ou, pelo menos, a chegada do temido “bug do milênio”, começava a aventura do polo tecnológico que hoje movimenta cerca de R$ 2 bilhões.

Foi um momento muito interessante, havia um conjunto de iniciativas um tanto quanto isoladas na universidade, no Itep, no Softex… E o Porto Digital começou a ser o elemento de aglutinação.”

Memória do Futuro - Fábio Silva
Fábio Silva, primeiro presidente, fala sobre o desafio de começar do zero.

Fábio, que hoje tem atuado como professor e pesquisador, foi atraído pelo desafio de materializar o que, até então, era um conceito. Ele gostou de começar do zero e contar com a vantagem de poder ter uma página em branco para imprimir uma marca. Ao mesmo tempo, havia um ponto de partida com uma desvantagem, pois não existia quase alicerce nenhum. Foram três anos edificando uma estrutura sem precedentes para não apenas fincar as bases da inovação, mas também reinventar a ilha do Bairro do Recife, que por muito tempo foi  um pedaço marginal da cidade. “Fiquei muito contente de participar desses dois ou três primeiros anos das fases iniciais de implantação, de construir e reformar prédios, de mexer com patrimônio histórico e o imaginário das pessoas. Isso me motiva bastante”, conta Fábio Silva. Depois de três anos abrindo passagens, ele sentiu que sua missão de criar a plataforma havia sido cumprida. Então, decidiu que era hora de zarpar e deixar a condução do projeto para outro capitão do Núcleo de Gestão do Porto Digital (NGPD).

Hora de levantar velas

O lugar desocupado por Fábio em 2003 passou a ser de Pier Carlo Sola. Italiano com passagens por grandes grupos como TIM e Olivetti, Pier Carlo trazia consigo a visão global que o Porto Digital precisava naquele momento. Sua atuação foi focada em ampliar as conexões internacionais e caracterizar um pouco mais o Porto Digital como uma corporação, a fim de atrair ideias e negócios para este ponto até então inexistente no mapa da inovação mundial. Quando o executivo assumiu a presidência, outro protagonista entrava em cena: o paraibano Valério Veloso, que virou diretor no NGPD e não estava ali por acaso. “Entrei nessa equipe como o camarada que tinha memória dos fatos, sabia onde estavam as cordas, tinha participado dessa articulação com o governo.”

A memória dos fatos a que Valério se refere está no cargo ocupado anteriormente. Ele atuava na AD Diper, a Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco, para onde foi depois de uma abordagem de Claúdio Marinho, Silvio Meira, Fábio Silva e o então presidente da AD Diper, Kleber Dantas. “Quando eu conheci essas figuras fantásticas que eu mencionei, o Porto estava em um momento ainda bastante conceitual, bastante inovador, com uma abordagem agressiva”, relembra o empresário, que atualmente é diretor de Novos Negócios na Kroma Energia. Os quatro modelaram o convite para que Valério entrasse na agência já com foco em negócios inovadores e fundos de investimentos, inclusive em requalificação imobiliária, mirando os objetivos do Porto Digital. Valério, que vinha dos Estados Unidos e estava só de passagem para ver a família no Recife, a caminho de uma oferta de trabalho em São Paulo, resolveu ficar. Assim, ele virou o vínculo da agência com o parque tecnológico e estreitou os laços do polo com a classe política pernambucana.

Só tinha uma alternativa: crescer e ampliar a visibilidade do Porto Digital. Pier cumpriu um papel estratégico nisso e eu fiquei lidando aqui na articulação com stakeholders e na ‘pancadaria’ de governo.”

Curiosamente, o anúncio da saída de Fábio veio quando Valério estava pronto, outra vez, para voltar ao exterior em busca de novas oportunidades. E, outra vez, ele resolveu ficar. Aceitou o convite para ser diretor no NGPD e segurar as pontas enquanto Pier Carlo “vendia” o parque mundo afora. Dois anos depois, em 2005, Pier Carlo seguiu para outros empreendimentos e Valério assumiu o leme de uma embarcação da qual já conhecia todos os detalhes.

Valério destaca que a inovação do próprio ecossistema que o Porto criava influenciou o modo como o parque foi conduzido. “Fiquei muito surpreso com a diversidade de atores que encontrei. Chico, você inaugurou uma discussão, um paradigma novo, quando disse que tínhamos de competir e cooperar”, disse o executivo ao se dirigir a Saboya, que esclareceu: “É serendipidade. Isso, aqui, é vivenciado muito intensamente”. Ele ilustra a explicação com uma frase de José Cláudio Oliveira, da Procenge, no vídeo comemorativo de 15 anos do Porto Digital: “Zé Cláudio disse que estar aqui é fazer um intercâmbio todo dia”. Saboya ressalta que essa escolha de estar perto da cidade e não dentro de um ambiente universitário foi feita no início do Porto Digital e hoje virou um um paradigma dos ambientes de inovação. “Eles buscam um reencontro com a urbanidade, com a cidade real onde as pessoas moram, vivem, transitam, habitam, choram, sofrem se divertem… onde vivem, têm vida. Então você extrai cooperação e sinergia desses encontros cotidianos. No elevador, em um café, em um almoço, ao caminhar nas calçadas. É esse intercâmbio todos os dias.”

A primeira casa

Os ganhos de inteligência financeira na gestão de Valério Veloso tiveram seu ponto alto com a conquista do edifício Vasco Rodrigues, antiga sede do Bandepe, o extinto Banco do Estado de Pernambuco, que foi cedido pelo Governo do Estado e passou a integrar o Porto Digital. Hoje, os rendimentos com os aluguéis da edificação garantem 70% da receita do NGPD. Além da importância econômica, o endereço “Cais do Apolo, 222” é emblemático, pois representa a disrupção que o parque trouxe na gestão pública. Aqui vale um lembrete: o Porto Digital nasceu independente, condição garantida pelo formato da pessoa jurídica (organização social), mas a iniciativa veio do poder público. Portanto, era natural que, para atingir sua autonomia, houvesse uma superfície de onde pudesse saltar. Esse chão era o prédio do Bandepe e Valério, ao perceber a oportunidade, não deixou passar: solicitou a cessão por parte do Governo do Estado.

Memória do Futuro - Valério Veloso
Valério Veloso foi responsável pela ocupação do prédio do Bandepe pelo Porto Digital.

Na conversa, Chico Saboya pontuou a importância da persistência de Valério nesse ponto, sobretudo porque, no início, o edifício, construído na década de 1970, era uma fonte de problemas. “O matuto diz que quem bota o homem pra frente é topada. Tu tinhas consciência de que o Bandepe seria a base financeira do NGPD quando aceitou aquela carcaça?”, perguntou Chico a Valério, que contou o périplo dessa conquista.

Valério diz que a proposta foi recebida com espanto e resistência – atores do governo, naturalmente, visavam um local para abrigar suas secretarias –, mas seus argumentos eram mais fortes: “Tinha que ser, era o prédio certo para darmos sustentação ao Porto Digital, com capacidade de financiar suas próprias atividades e, eventualmente, conseguir alavancar novos investimentos”. O desafio era contornar a concorrência: “Todo mundo queria o imóvel. Mas no final do dia o Porto Digital foi bem-sucedido e recebeu aquele prédio, sem nenhum tostão”. De fato, naquele momento, o imóvel não gerava despesa, a despeito do custo mensal de R$ 96 mil com manutenção, incluindo um ar-condicionado que só entregava 26°. “Aí tem a veia do empreendedor que eu tinha herdado de Fábio: tem que fazer dar certo. Isso hoje é um problema, mas vai ser uma grande solução lá na frente”, diz Valério. Território conquistado, era hora de defendê-lo:

Depois que o prédio veio para o Porto Digital, sob concessão, o que tinha de secretaria querendo se encaixar… Eu era um estranho no ninho, mas ‘sentei praça’ na frente do prédio e disse: aqui ninguém entra. Estamos contando esta história para o futuro: não desistam”.

“Temos uma dívida com esse caboclo”, complementa Chico Saboya. Valério destaca o suporte do banco ABN-Amro Real, que mais tarde seria adquirido pelo Santander: “É preciso fazer justiça ao ABN, que nos ajudou naquele momento”.

A viagem mais longa

Em 2007, Valério chegou à conclusão que seu ciclo à frente do Porto Digital estava concluído. Era hora de encontrar alguém que conseguisse dar continuidade ao crescimento do parque tecnológico, dentro do contexto de desenvolvimento que o próprio Estado vivia, como Saboya relata em seu artigo. Naquele momento, o embarque de Saboya foi praticamente óbvio, tendo em vista as ações que ele já desenvolvia no então embrionário ecossistema. Além disso, como ele mesmo comenta, “tinha um pé em cada pá” da Tríplice Hélice – modelo em que os criadores do parque se basearam e no qual universidade, empresas e o poder público interagem para gerar desenvolvimento econômico por meio do empreendedorismo conduzido pela inovação.

Francisco Saboya, ex-presidente do Porto Digital
Para Saboya, o futuro do parque tecnológico passa pela presença de habitações do Bairro do Recife.

O economista, que também era professor universitário, já tinha experiência em gestão pública, como assessor de prefeituras e como secretário de Desenvolvimento Econômico do Cabo de Santo Agostinho (área norte da Região Metropolitana do Recife). A WIT, consultoria de Saboya, havia passado por um programa do Softex Recife em um processo que hoje seria chamado de incubação e mantinha serviços para empresas do setor de TI.

A sinergia era tanta que, já em 2002, Saboya já era conselheiro do Porto Digital, de onde saiu para atuar como profissional para o próprio parque. O consultor desenvolveu o planejamento estratégico do polo, que já havia sido validado pelo Conselho Administrativo do Porto Digital e parcialmente implementado. Ele relembra, com bom humor, como foi feita a costura final desse contexto com o futuro do parque:

Aí, mais uma vez, vieram Silvio Meira e Cláudio Marinho, que estão por trás da mobilização de Valério e da minha. Dois paraibanos. Isso é uma conspiração de paraibanos! O Porto Digital, pode botar, é uma conspiração de paraibanos”.

Contudo, Valério revela que a proximidade de Saboya com o Porto Digital não o impedia de ter uma postura analítica em relação ao parque: “Chico era uma das cabeças mais inquietas que tínhamos e ele tinha uma visão bem crítica de uma série de elementos que estavam postos”. Não é à toa que a maior sátira da qual o polo foi alvo em toda a sua história veio pelas mãos de Saboya: o Porco Digital, uma troça carnavalesca que conseguiu irritar o sereno Cláudio Marinho – saiba mais no bônus que deixamos no vídeo com o compacto desta conversa. “Chico abriu mão de muita coisa na época. Eu me recordo muito das longas conversas que tínhamos ao final do expediente do Porto… ele abriu mão de muita coisa, teve a coragem de matar essa bola no peito e assumir, e hoje Porto Digital é o que é”, conclui Valério.

Ao assumir como capitão do Porto Digital em 2007, Saboya iniciaria uma jornada de 11 anos, que se encerrou em outubro de 2018 para dar espaço a outra aventura: a presidência do Sebrae em Pernambuco. No parque tecnológico, foram muitas ações, descritas no artigo publicado por ele, e que passam pela integração da economia criativa como novo pilar do polo; implantação de braços de fomento a startups, com a Jump Brasil; e expansão dos limites geográficos, tanto no Recife quanto no interior, com o Armazém da Criatividade de Caruaru (Agreste pernambucano), entre outros marcos da evolução do parque.

 

Troça carnavalesca Porco Digital
Primeiro Porco Digital, em 2006. Momento alto da troça carnavalesca era a “cagada digital”

O futuro constantemente reinventado

Com Saboya, o Porto Digital também cumpriu sua missão de “inovar por dentro”, desafio também para a nova gestão. O atual capitão do Porto Digital é Pierre Lucena. E a viagem dele, garantem os ex-presidentes, continuará em busca de novas rotas. “O Porto Digital nunca vai estar terminado, nenhuma obra com essa envergadura vai terminar. Isso não é um projeto, é um processo, uma construção”, avalia Fábio Silva. “É algo que está sempre andando. Os projetos vão se transmutando e as ideias vão gerando coisas novas”, acrescenta Saboya.

Para eles, o reforço da serendipidade é fundamental para a transformação contínua do polo de inovação. “Eu ficaria extremamente feliz de ver, um dia, uma repopulação de habitações no Bairro do Recife”, desabafa Fábio Silva. Saboya também lamenta a lacuna deixada pela falta de habitações residenciais: “Nós viajamos, conhecemos muita coisa. O Porto Digital se destaca e se diferencia por mérito, por tudo que é. Mas existe uma grande lacuna: o polo não será considerado uma área de inovação completa plena, de referência máxima, enquanto não tiver gente morando aqui”.

Os três ex-presidentes que participaram da mesa redonda também deixam um desejo para o futuro: mais conexões entre pessoas com o mesmo espírito das que, até agora, deram vida ao ecossistema do parque tecnológico. Valério Veloso usa o caso do Porco Digital como um exemplo disso, como uma expressão lúdica da “qualidade das conexões que o Porto foi criando com pessoas-chave”. Fábio complementa: “O mais importante para o Porto Digital, desde a gênese, foram as pessoas, com os perfis que elas têm, nos lugares onde estavam, com um objetivo em comum”. Para ele, esse conjunto é o que faz com que o Porto Digital seja único: “Não dá pra reproduzir. Para o futuro, se quiser construir uma coisa parecida, pense nas pessoas”.

 


Assista a um compacto da conversa entre Fábio Silva, Valério Veloso e Chico Saboya:

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