“Nós não vamos sair daqui”

Silvio Meira adotou o Recife como o lugar onde quer deixar seu legado. A decisão já rende boas histórias, e ainda vai render muito mais.
Memória do Futuro - Silvio Meira
Silvio Meira, Lucas Queiroz e Fred Vasconcelos conversaram na sala de Silvio no CESAR Recife. Foto: Alan Rodrigues

A culpa de Silvio Meira ser engenheiro é de uma banda de tijolo que ele mesmo jogou para cima e caiu de volta em sua cabeça. Pelo menos é essa a versão de Dona Amara, avó de Silvio, que teria presenciado a cena quando ele era criança, em Taperoá, cidade paraibana a 247 km de João Pessoa. Daí em diante, “é tudo história”, como o próprio Silvio diz. Como bom contador de causos, ele revelou ao Memória do Futuro as partes dessa história que foram fundamentais para engrossar o caldo da inovação em Pernambuco e criar duas das suas principais bases: o CESAR e o Porto Digital. Na conversa, realizada na sala do cientista dentro do CESAR, no Recife Antigo, dois empreendedores ajudaram Silvio a debulhar suas lembranças: Lucas Queiroz, da In Loco Media, e Fred Vasconcelos, da Joy Street.

Já no início deste quarto encontro do Memória do Futuro, Lucas Queiroz quis saber mais sobre como Silvio avalia a si mesmo, considerando o tanto que se fala sobre ele. Para o cientista, tudo se resume a curiosidade: “Eu sou um curioso, na realidade é isso que sou. Não sou especialista em nada, sou um curioso que anda atrás de novos problemas pra resolver”.

Os olhos curiosos do jovem Silvio tiveram seu primeiro alumbramento com o Recife em 1972. Veio estudar. Seu pai, Inácio, queria muito que os filhos tivessem a melhor formação oferecida no Nordeste. Assim, enquanto outros pioneiros, como Belarmino Alcoforado e José Cláudio Oliveira, abriam, a golpes de facão, a mata densa do setor de TI brasileiro, Silvio começava a dar seus passos rumo à academia. Um caminho que seguiu por São Paulo, voltou a passar pelo Recife e teve um ponto alto na Inglaterra, onde se formou doutor antes de voltar para Pernambuco e para a UFPE. A paixão pelo Recife se consolidaria em 1986, quando, pela primeira vez, ele brincou o Carnaval. “Eu quase morri, quase que eu não durava, quase… não fazia nada, mas foi o Carnaval!”, conta Silvio, explicando a Fred Vasconcelos um dos motivos que o fizeram ficar por aqui. Os “novatos” como Silvio modificaram o currículo da época, contou ele, quando Lucas, egresso da UFPE, perguntou como era o ensino de linguagem de programação daquela época. “Era ao deus-dará. A linguagem mais moderna era pascal. Demolimos esse currículo em 1985”, rememora Silvio, revelando os excessos que os ajustes da grade trouxeram e que foram alinhados com o passar dos anos:

“Em cinco, seis anos, mudamos completamente o jeito do curso de graduação. Mudamos, inclusive, o tipo de aluno que fazia o curso. Ajustamos para botar a demanda dentro do que era razoável para seres humanos. Aí começamos a formar uns monstros.”

Memória do Futuro - Silvio Meira jovem
Silvio na época da formatura no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em 1977. Foto: Acervo Pessoal

 

Missões impossíveis

A decisão de Silvio de viver e morrer no Recife foi fundamental para que iniciativas como o CESAR e o Porto Digital vingassem. Missões (quase) impossíveis que Silvio, ao lado de outros cientistas e profissionais visionários, enxergou como guias para o futuro. Tudo começou com um plano ousado para o Centro de Informática (CIn) da UFPE. “Fizemos o primeiro plano do Centro de Informática: em 15 anos, íamos colocá-lo no mapa do Brasil. Escrevi esse plano com contribuição de todo mundo numa máquina de escrever Olivetti Lettera 22, emprestada de meu pai.”

Entre as metas, estava construir laboratórios, ter terminais para todos, contratar 20 doutores e criar um doutorado. Ao que a reitoria respondeu ser impossível. “Mas era exatamente por isso que íamos fazer”, relembra o cientista. Naquele período, em todo o País, havia somente 49 PhDs em computação – Silvio era o 49° -, o que tornava o plano para o CIn ainda menos “palpável”. “É claro que parecia impossível. Mas nunca tínhamos feito, nunca tínhamos tentado, não sabíamos se era impossível ou não. Começamos a fazer e acabou que deu certo: sete anos depois, tínhamos os 20 doutores.” Para Silvio, esse foi o resultado de um esforço de equipe que preferiu se fiar no trabalho, e não no discurso.

“Manoel Agamenon Lopes tinha um ditado que as pessoas acabaram depois dizendo que era meu, de tanto eu repetir: ‘Nada resiste ao trabalho’. Então, enquanto as pessoas ficavam discutindo: ‘toma isso, toma aquilo outro’, nós nos concentrávamos e trabalhávamos de manhã, de tarde e de noite.”

Foi assim que, entre 1985 e 2000, o CIn passou de um lugar com quase nenhum doutor para ser um centro que só tinha doutores.

 

Resolvedores de problemas

Nesse ponto da conversa, Fred Vasconcelos, que começou a empreender no fim dos anos 1990, quis saber quais as motivações para fazer o CESAR surgir no ambiente do CIn. Silvio revelou que, embora existisse um espírito de ganhar o mundo, inicialmente não havia um plano para criar um centro de pesquisa e inovação. “Descobrimos que nunca seríamos grandes pesquisadores. “Descobrimos que formávamos as pessoas e elas não tinham localidade para ficar aqui, porque faltava contexto.” Por contexto, Silvio entende “problemas complicados para resolver”. Algo necessário para o nível de profissionais que o CIn estava formando naqueles tempos.

“A ideia original era: ‘Vamos atrair para o Recife os problemas que ninguém sabe como resolver’”, comenta Silvio. Deu certo. Em 1996, Silvio, Fábio Silva e Ismar Kaufman fundaram o CESAR, uma entidade privada com foco em resolver problemas complexos de instituições e empresas do Brasil e do mundo. Com o novo Centro montado, vieram problemas do governo federal e empresas privadas como Bompreço, IBM, Microsoft e Motorola.

Memória do Futuro - Silvio Meira
Apresentação de Silvio Meira em seu laptop. Foto: Alan Rodrigues


Silvio detalhou como o nome da nova instituição estava alinhado com as missões impossíveis que inspiraram os fundadores. “Pensamos assim: ‘Vamos montar um negócio pra dominar o mundo. Quem é que domina o mundo? São os grandes conquistadores, não é? Não vamos botar Átila ou Alexandre, que é um nome grande pra burro. Alexandre significa o quê?’”. Ele relata que, em meio a algumas garrafas de uísque, viram que César poderia logo representar
“Centro de Estudos”. Depois, acrescentaram “Sistemas Avançados”. No começo, seria CESA, mas, depois da última dose, perceberam que o R poderia representar “do Recife”.

“O CESAR (Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife) cumpriu o papel de manter toda essa mão de obra aqui no Recife?”, questionou Fred Vasconcelos. Para Silvio, cumpriu. “Veja: o CESAR não foi criado para evitar que as pessoas fossem embora. Ele foi criado pra ter uma alternativa”, esclarece o cientista, ao falar da instituição que hoje tem unidades em São Paulo, Paraná e Manaus. “O CESAR virou uma instituição verdadeiramente nacional a partir do Porto Digital, que é parte subsequente da nossa história”, complementa o cientista, que ressalta a importância de idas e vindas para o desenvolvimento econômico de uma região.

“Você vai passar três anos trabalhando na Alemanha, dá uma reorganizada na sua vida, na sua visão de mundo, no conjunto de conceitos que você tem. Quando você volta, é capaz de pegar o que estava fazendo aqui, alguma coisa nova que não estava sendo feita, e começar a fazer e fazer de outra forma totalmente diferente.”

 

Preparação para o Porto Digital

A conversa com Lucas e Fred motivou Silvio a contar uma outra história, sobre como tudo poderia ter sido diferente se ele tivesse seguido à risca seus projetos:  “Eu pensei uma coisa a ser dita para ser gravada para a história. Do meu ponto de vista, o que a gente tinha que fazer era uma coisa extremamente burra. Eu achava extremamente inteligente na época. Hoje, quando olho pra trás, ainda bem que a gente não fez. Iria ser uma estupidez total.”

Ele revela que, pelos seus planos originais, o CESAR seria dentro dos limites da UFPE, em dois prédios de 20 andares, com lâminas de mil metros quadrados, junto ao CIn. A teoria de Silvio era que o sucesso viria por meio da presença das empresas no meio acadêmico, onde estava a formação de capital humano. “Isso teria sido estupidez monumental e ainda bem que não foi feito assim”, comemora Silvio, ao esclarecer que essa opção praticamente restringiria o acesso a apenas uma das instituições de ensino superior do Estado, além de ser uma criação forçada, sem origem ou capacidade orgânica. Foi quando entrou em ação a influência de Cláudio Marinho como criador de conexões entre a cidade e a inovação tecnológica, mostrando a possibilidade de ligar o novo começo representado pelo CESAR aos planos de recuperação do Recife Antigo. No entanto, os desafios estavam à altura da nobreza da proposta:

“Aqui tinha assalto todo dia, os assaltantes trocavam laptops por drogas. Isso aqui era um verdadeiro inferno. Mas nós pegamos o desafio numa escala de ‘nós não vamos sair daqui’.”

 

Um legado com endereço certo

Para Silvio, uma das principais testemunhas desse processo é um baobá plantado na frente do CESAR, na Praça Tiradentes, que já tem 17 anos. “Ele vai durar 500 anos. Então, a ideia é a seguinte: ‘Vamos botar um baobá aqui e daqui a gente não vai sair’. É aquela história: ‘Nós vamos morrer aqui’.” Ele conta que, certa vez, disse em entrevista que seu sonho era que todo empreendedor do Porto Digital pudesse ter um carro conversível e andar com a capota abaixada sem se preocupar. “Se conseguirmos equilibrar o ambiente todinho ao nosso redor, não tem problema nenhum. Se o sonho que vem do começo do CESAR não for bom para todo mundo, não adianta fazer. Não adianta termos 200 caras que ficaram ricos, se todo mundo anda de carro blindado com um cabra de segurança armado atrás.”

“Quando me estabeleci aqui, há uns 35 anos, decidi que eu queria muito morrer aqui. Você pode até ter uma disputa com alguém por causa de um lugar, se você escolheu viver lá. Mas se essa pessoa escolheu morrer lá, não dá para tirá-la do lugar porque, em última análise, é imbatível, decidiu morrer lá”, esclarece o cientista, que afirma ter sido essa a “profissão de fé” de personalidades como Ariano Suassuna e José Paulo Cavalcanti Filho. Silvio acredita que, uma vez assumido esse compromisso, busca-se fortalecer uma rede em prol do lugar. “E se cada um de nós puder dedicar uma pequena partezinha de seu tempo para contribuir com a construção dessa história, ela se torna imbatível, a cidade é imortal.”

Memória do Futuro - Silvio Meira
Lucas perguntou a Silvio sobre suas expectativas para o futuro. Foto: Alan Rodrigues

 

Do CESAR ao Porto Digital

A decisão pelo bairro mais antigo da cidade foi tomada em sintonia com o movimento que também criou o Porto Digital, em 2000. Um processo sobre o qual o Memória do Futuro também conversou com Cláudio Marinho e cuja história Silvio enriquece: “Contra absolutamente todos os fatores desfavoráveis e, obviamente, com auxílio de um número grande de fatores positivos, fomos montando o Porto Digital. Mas ninguém estudou isso, ninguém sabia fazer isso. Não tinha uma teoria de como fazer ‘Portos Digitais’. Então, nós parecíamos muito espertos fazendo aquilo. Havia muita intuição e muita vontade. De novo, estudando de manhã, de tarde e de noite. Eu praticamente saí da minha área de engenharia de software e passei a estudar inovação 24 horas por dia”.

Dentro desse contexto, Lucas quis saber como Silvio, presidente do Conselho Administrativo do Porto Digital, avalia o futuro do parque tecnológico. “Eu gostaria muito de achar que, daqui até 2045, 2050, o Porto Digital conseguirá se estabelecer independentemente do Núcleo de Gestão e de incentivos estatais”, resume o cientista, completando que, nesse prazo, o parque poderá representar 10% da economia pernambucana – hoje está em torno de 1,5%. Ele esclarece que o peso estatal em parques tecnológicos é significativo em outros casos semelhantes ao redor do mundo, especialmente em fases iniciais. “Nesse longo prazo, temos que atrair para cá mais, melhores e maiores empresas; fazer com que nossos empreendimentos locais tornem-se mais, maiores e melhores do ponto de vista de penetração, qualidade do trabalho gerado, remuneração, impacto e margem de lucro”, aponta Silvio.

Enquanto os anos se desenrolam, Silvio continua jogando bandas de tijolos para cima. Questionado sobre como enxerga o próprio futuro, ele não fala em outra coisa a não ser suas descobertas e novos negócios:

“No começo eu disse que eu sou um cara muito curioso. Estou sempre procurando um problema que não sei resolver. Isso é quase a mola mestra da minha vida, é a minha razão de existir.”

Os problemas atuais de Silvio estão concentrados na Ikewai, uma rede de desenvolvimento de novos negócios que toca com os sócios Sérgio Monteiro Cavalcanti e Fernando (Teco) Sodré. A meta é, em 20 anos, criar 20 negócios que, juntos, faturem R$ 1 bilhão. “Estamos querendo fazer com que a Ikewai, ela própria, seja uma escola de empreendedores. Eu sou um professor e professores não desistem jamais.” Dentro da variedade dos setores de empreendimentos que a Ikewai já alcança, um em especial chama a atenção de Silvio: genética. “É isso que eu pretendo fazer quando eu tiver cem anos, ficar trabalhando com genética, programando pessoas, para o bem”, prevê Silvio, entre risos, ao dizer que não consegue se ver aposentado. Quando fala em cem anos, ele se refere à longevidade da família Meira: “Minha família morre tarde. Eu tenho pai e mãe com 92, 93 anos, ambos trabalhando, fazendo as coisas. Minha mãe continua fazendo crochê, continua perguntando onde é que eu estou no Whatsapp, meu pai continua comprando e vendendo mamona e dirigindo o carro dele. Se tudo correr bem, eu vou estar enchendo o saco de todo mundo por mais uns 30 anos pelo menos”.


Assista a um compacto da entrevista com Silvio Meira

One Comment

  1. Exemplo nordestino de determinação, Silvio sempre soube o que quer, realizador schupeteriano em permanente ” destruição criativa”. Alem de icnoclasta nato, sabe como Ariano, a usar argumentacao forte para convencer. Sou testemunho de um embate entre duas apresentações seguidas: o simpático ex-presidente Bill Clinton, foi desmontado em seu discurso globalista utópico sobre o Brasil, diante a narrativa ” cabra de peste” do Sivio sobre inovação e empreendedorismo em ecossistema quase sempre adverso.
    Venceu o realismo nordestino, sem comodismo ou rendição; a comparação foi majoritariamente pelo segundo.
    Vamos aproveitar a longevidade dos Meira para clonar e multiplicar alguns Siivio para retirar o País desta letargia, nao menos longeva.

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