Do mainframe à internet das coisas

Fomos buscar as histórias e os conselhos de um dos grandes pioneiros da TI pernambucana, que há quase 50 anos inova no mercado nordestino, munido de muito bom humor e otimismo.

 

Memória do Futuro - Belarmino Alcoforado
Belarmino Alcoforado ainda aponta direções. Foto: Virgínia Rodriguez


Dois monitores, um laptop, um headphone com microfone, um mouse… a estação de trabalho de Belarmino Alcoforado mal tem espaço para mais gadgets. O “bunker” está montado bem longe das 12 horas de expediente diário que ele dava no Recife. Aos 69 anos e com a saúde exigindo mais cuidados, ele instalou seus canais de conexão em um apartamento perto do mar e da família, em Cabedelo (PB). É desse ponto que ele mantém o fluxo intenso de suas ideias, seus conselhos, suas tiradas impagáveis, seus projetos e suas amigáveis arengas. É também de lá que ele rumina uma inquietante reflexão. “Vou parar ou não? Estou em uma fase de indecisão”, revela o homem que é uma das maiores referências das raízes da tecnologia da informação no País e que está prestes a completar 50 anos dedicados à inovação.

Paraibano de nascimento e pernambucano por direito, Belarmino recebeu a equipe e os convidados do projeto Memória do Futuro em seu apartamento no bairro de Intermares, em Cabedelo, cidade onde fica o porto da Paraíba, vizinha a João Pessoa. Era maio de 2017 e havia dois meses que ele tinha se aquietado em sua terra natal – mudança pressionada pela família, que temia a piora da sua saúde. Quando estava no Recife, enfiava-se no escritório por longos expedientes, envolvido com os seus novos projetos de internet das coisas (IoT).

Chegamos à casa de Belarmino por volta das 9h de uma terça-feira e, sem pompa nem circunstância, ele nos convidou a ficar ao redor da mesa da sala de jantar, que, por sua vez, está ao lado das duas escrivaninhas de onde ele trabalha remotamente. Sentou-se estrategicamente perto de seu home office, de modo que alcançasse rapidamente os computadores: mexia neles de vez em quando, sob pretexto de nos mostrar algo para dar uma olhadela em seu WhatsApp. Cumprimentos feitos e equipamentos montados, começamos a conversar sobre passado, presente e futuro. Missão na qual nossos convidados nos deram um importante suporte. Estavam ao lado da equipe e participaram da entrevista Alcides Pires, presidente do Softex Recife e idealizador do projeto; Gerino Xavier, presidente do Sindicato das Empresas de Processamento de Dados de Pernambuco (Seprope); e Ítalo Nogueira, presidente da Associação das Empresas Brasileiras da Tecnologia da Informação (Assespro PE-PB).


Corisco, o relâmpago nordestino

Um dos assuntos que manifestam mais claramente o caráter desbravador da jornada de Belarmino é o Corisco, primeiro microcomputador nordestino, feito em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) com peças fabricadas no Estado. Carregando em seu nome duas fortes referências – a faísca elétrica e o cangaceiro do bando de Lampião – o Corisco nasceu como reflexo da reserva de mercado instaurada pela Ditadura Militar. Era o início da década de 1980. A Pitaco Assessoria, primeira empresa de Belarmino, já tinha dado origem à Elo Processamento de Dados, que estava com uma demanda grande do Banorte para operação de novos sistemas. A Elo conseguiu uma autorização para comprar um mainframe Burroughs B-1800 e, para a entrada de dados, comprou máquinas Scopus, que copiariam os aparelhos da italiana Olivetti, com a garantia da Olivetti de que funcionariam.

Como isso acabou não acontecendo, Belarmino, que tinha feito seu primeiro contato com a microinformática, encantou-se. “Vou fazer um computador, vamos botar uma máquina nacional pra fazer a entrada de dados”, prometeu a si mesmo. Afinal, tudo estava a favor: já tinha os clientes e a Pitaco tinha autorização necessária. “Foi quando abri a primeira loja de informática do Norte-Nordeste, a Elógica Microssistemas, na Rua da Hora (bairro das Graças, Zona Norte do Recife). Foi aquela festa, mas as máquinas não prestavam”, conta. Na época, foi montado um protótipo batizado de Pixaim, pela semelhança da quantidade volumosa de fios com cabelos encaracolados. Mas ainda não era o suficiente. Era preciso ter um teclado rápido para digitação, que transmitisse na mesma hora. Com a chegada de nomes como Alberto Nascimento, o Xanha, e Rildo Pragana, o projeto evoluiu.

“Aí, resultado: eu me apaixonei e saí enveredando por esse caminho, aprendendo com Rildo e companhia limitada, fuçando chip novo. A gente era muito bom em software e em fazer emenda. A brincadeira deu no Corisco, que foi um sucesso, mas um sucesso mal feito. Porque eu não aceitava uma peça de São Paulo.”

 

Memoria do Futuro - Belarmino Alcoforado

Corisco foi resultado da costura que Belarmino fez entre diversos fornecedores. Foto: Acervo Pessoal


Essa resistência de Belarmino em relação às peças fabricadas em São Paulo o obrigou a criar uma cadeia de fornecedores em Pernambuco, reunindo 12 empresas que toparam a empreitada. Com tudo montado localmente, o Corisco virou caso de sucesso nacional, com destaque da sua participação no pioneirismo do Banorte:
toda a rede bancária já era online em 1986 através do computador pernambucano. O aparelho também foi destaque em feiras internacionais e na contagem eletrônica não oficial na eleição de Miguel Arraes para governador em 1986.

Mil novecentos e oitenta e seis foi mesmo um ano marcante na vida de Belarmino. Tanto que ele elege dois fatos que ocorreram naquele ano como o pior e o melhor momento de sua jornada até agora. O melhor, o ápice do Corisco na feira da Sucesu (Sociedade de Usuários de Tecnologia, que na época se chamava Sociedade de Usuários de Computadores e Equipamentos Subsidiários), para onde a Elógica levou mais de 20 empresas. No estande de Pernambuco, que Belarmino gosta de chamar de “Vale da Areia”

, numa sátira ao Vale do Silício norte-americano, estavam atrações especiais. Três exemplares do computador pernambucano faziam fotos que eram impressas na hora – um impacto e tanto para o setor de TI no Brasil de 30 anos atrás. O então governador de Pernambuco, Gustavo Krause, não teve dúvidas: queria que o Estado avançasse através de tecnologias como essas. “Foi uma felicidade total, êxtase!”, conta Belarmino.

Memória do Futuro - Belarmino Alcoforado
Belarmino apresenta Pernambuco em feira da Sucesu em 1986, onde montou o Vale da Areia. Foto: Acervo Pessoal

Mas os ventos mudaram muito rápido. Belarmino relata que, de uma venda via concorrência, com projeto aprovado pela Assembleia Legislativa e pelo BNDES de US$ 370 mil, o céu de brigadeiro virou inferno. “Saímos da feira  felizes e ricos e, quando voltamos, Sarney puxou o freio e criou obstáculos à liberação. Acabamos recebendo só US$ 125 mil. Falimos”, lamenta Belarmino. “Nenhum banco queria conversar. E eu fiquei na resistência. O pessoal dizia: ‘Abandona tudo!’, mas eu e meus sócios e eu dissemos: “Não!”. A mão mais forte que veio em auxílio da Elógica foi a de Miguel Arraes, governador que sucedeu Krause.

“Dr. Arraes me chamou três vezes e, na terceira, disse: ‘Eu quero essa empresa salva e sem mudar de dono’. Me emprestou US$ 300 mil, que eu paguei depois. Então a gente continuou, refez o produto todinho e, em 1992, tinha 17 birôs no Recife. Em 1992 e 1994 só tínhamos eu e a Procenge. Morreu todo mundo e a gente disparou Brasil afora.”

Memória do Futuro - Belarmino Alcoforado
“Empata Foda”, figura criada pelo cartunista Miguel para representar um tipo de sujeito que Belarmino detesta.

Apesar da máquina que levava o mesmo nome da empresa não ter vingado após a abertura comercial iniciada em 1988, a criação de hardware continuou através da produção de emissores de cupom fiscal e softwares para placas específicas. Tanto que a empresa Corisco, que sucedeu a Elógica Microssistemas quando os computadores homônimos começaram a ser montados, faturou R$ 4,5 milhões em 1996 – o correspondente a aproximadamente R$ 20 milhões em valores atuais. Um desempenho que correspondia a 40% do resultado geral do grupo.

Contudo, as mudanças de estratégia com foco em software fez com que em 2000 a empresa parasse de fabricar equipamentos e fosse absorvida pela Elógica S.A. A lição aprendida? Uma empresa não deve depender de governo: “A maior dificuldade é você ter a tecnologia e não ter dependência do Estado. A pior alma sebosa é a que está no governo, dando palpite, cagando regra. Eu tenho até as figuras: o Empata-Foda 1, 2 e 3”, ironiza.

Encanto e evolução da internet

Entre os vários projetos que fizeram de Belarmino Alcoforado uma referência, a conexão à internet sem dúvida foi o mais marcante para o grande público. Por mais que iniciativas como o Corisco sejam inseparáveis da história da tecnologia da informação no Estado, milhares de pernambucanos só começaram a “surfar” na rede mundial de computadores porque a Elógica, fundada por Belarmino, conseguiu oferecer conexão a R$ 1 por hora. Estratégia comercial que refletia a vontade do empreendedor de ver a cidade toda conectada ainda na década de 1990. “Um dia, cheguei pra Cláudio Marinho (hoje diretor da consultoria Porto Marinho) e propus que eu saísse soltando fibra óptica num barco no Rio Capibaribe”, brinca Belarmino.

Ele conta que tudo começou com um pesquisador da sua equipe da Corisco, em 1992. Era Márcio Montenegro. “Era um nerd que começou a trabalhar comigo em 1983. Ele sempre foi aquele cara calado, tímido, mas que tinha um palpite certeiro.” Foi ele quem contou sobre a novidade mais quente daquela época: era possível instalar um servidor de internet. O investimento era pesado: US$ 400 mil (o equivalente a cerca de R$ 1,3 milhão atualmente). Mas Belarmino já estava convencido que valia a pena arriscar. Ele conta como foi ver tudo pronto:

“Márcio montou o servidor e eu vi a imagem no Corisco. Uma imagem verde, horrorosa, mas eu vi o link. Eu já usava aqueles bate-papos nos Estados Unidos. Aí, eu disse: ‘É por aqui’. Me apaixonei pela ideia”.

E assim, em 1995, era criado o provedor de acesso Internet Elógica. Daí em diante começou a loucura, como diz o próprio Belarmino, que mandou construir um prédio novo para abrigar o negócio. “Eu tinha brigado com a Prefeitura e mandei fazer sem planta sem nada. Era pra ser um prédio térreo que terminou com dois andares e um auditório de 80 lugares.” A infraestrutura estava de acordo com a relevância do serviço. Enquanto outras empresas surgiam Brasil afora com internet a cabo de 54 KB e servidores comuns, Belarmino dava passos firmes em cima de servidores de “alto calibre” e fibra óptica de 2 MB. “Foi um parto bonito. Principalmente por causa da equipe.”

Memória do Futuro - Belarmino Alcoforado
Belarmino em 2002, ano em que descobriu o câncer. Foto: Acervo Pessoal

A base robusta possibilitou a popularização do serviço quando ele passou a cobrar apenas R$ 1 por hora de conexão, um terço do preço de mercado. “Apareceu uma figura chamada Clóvis Lacerda, incendiário, doido, dizendo que o preço devia ser 1 dólar, como era nos Estados Unidos. Aí eu comecei a ver: fibra ótica de um lado, do outro, aí lancei a internet a R$ 1 a hora. Todo mundo lançou a R$ 3, R$ 3,50. Ele fizeram isso pensando nos seus custos, eu fiz pelo ponto que vi no futuro. Quando a internet de R$ 1 começou a encher, a fibra óptica tinha estrutura”, explica o empreendedor. No ensejo, veio a Apartnet, que instalava internet em condomínios com uma rede formada por cerca de 50 usuários através de um  link ADSL de 1 MB – tudo dentro de uma caixinha que Belarmino apelidou de Jabuti, que recebia o link a partir da central da Telpe (uma das estatais que deram origem à Telemar e, posteriormente, à Oi). “Aí eu ligava o prédio por um cabo, roteava e a rede todinha aguentava. Eu digo o seguinte: ‘Foi um sarro, tá?’”

Em 2000, Belarmino finalmente cedeu aos assédios do mercado e vendeu o provedor à PSINet, em um negócio milionário e o maior até o estouro da “bolha da internet”, que ocorreu quase em paralelo. “Foi um grande negócio, foi festejado por todo mundo.” Mas Belarmino foi traído pelo destino. A PSINet acabou falindo. E o idealizador da Elógica mergulhou em uma inevitável melancolia. No entanto, o que realmente o maltratou foi a solidão à qual ele foi entregue pelos sócios no restante dos negócios. “Aí eu fiquei puto e peguei um câncer”, diz.

Aqui vale um adendo. Belarmino fala da doença revelada em 2002 do modo mais irreverente possível. A começar pela forma como chama o câncer: Carcinha. O apelido é uma sátira ao nome oficial da patologia, carcinoma. A despeito de ter sido comunicado que havia apenas 30% de chance de cura, Belarmino ainda deu um título a Carcinha: o câncer produtivo. Tão produtivo que rendeu até um livro sobre o assunto (ainda esperando publicação). A luta foi dura e levou parte da boa saúde que Belarmino tinha até então. Mas Carcinha foi vencido.

Memória do Futuro - Belarmino Alcoforado
Charge de Miguel para comemorar a vitória de Belarmino sobre o câncer, apelidado de “Carcinha”

 

Continuando a história da Elógica Processamento de Dados S.A, Belarmino conta que o vaivém foi desgastante e levou 15 anos até a venda dela para os sócios. “Quando vendi o provedor, a Elógica S.A ficou vazia, com um mainframe gigantesco pra pagar e o software todo no mainframe. Eu precisava parar tudo e desligar o mainframe. Daí é que vem minha expressão: ‘Não importa o tamanho da cagada, mas a velocidade da limpeza’. Montei uma equipe nova, demiti todos os sócios. Em um ano, a gente apagou tudo, refez a Elógica”, relembra. Dois anos depois, ele deixou a operação nas mãos de um diretor e passou a ocupar a presidência do Conselho de Administração, mas voltou à operação depois que Elógica foi arrastada para uma investigação da Polícia Federal sobre a Assembleia Legislativa de Alagoas. Na época, a empresa pernambucana processava a folha de pagamento da instituição. A Elógica não tinha envolvimento com o crime, mas sua imagem foi abalada. Depois de arrumar a casa, Belarmino vendeu a companhia. Hoje ele faz uma análise serena dessa transição:

“Fiz um bom negócio. Vendi na melhor hora. Estão me pagando tudo direitinho, tudo joia. E aí eu comecei a aventura do IoT e do artesanato. Agora estou decidindo se paro de vez ou não. Mas já defini que empresa não vou ter mais.”

Fazendo agora a memória do futuro

Belarmino ressalta que atualmente não pensa mais na internet desse formato já popularizado, em que as pessoas “surfam nos sites”, expressão comum no início da rede mundial de computadores. “A internet que eu vendi, em 2000, tinha um link de 8 MB caríssimo, uns R$ 180 mil por mês. Hoje tem internet de 30 MB a menos de R$ 50. “Pra que eu vou me meter mais nessa área? É briga de cachorro doido”, critica o empreendedor, que hoje não pensa mais em internet como um negócio em si. “A praia de Pernambuco tem que ser outra, completamente diferente.”

Memória do Futuro - Belarmino Alcoforado
Belarmino conversou com Gerino Xavier, Ítalo Nogueira e Alcides Pires. Foto: Virgínia Rodriguez

Quando fala em “outra praia”, Belarmino se refere às práticas de acesso ao conhecimento e compartilhamento que ele tem aplicado em seus novos projetos. “Eu hoje estou no seguinte conceito: ou eu vou pra base, ou eu me ferro. É nela que está o poder”, orienta o homem que agora está focado em investigar os retornos que a IoT pode dar a artesãos empoderados através de maquinário moderno para cortes a laser e montagens de peças.

“Não tem mais emprego, não tem mais patrão. Ou você empreende ou se f…. quando o Brasil vai aprender isso? Só vai começar a aprender quando começar a distribuir conhecimento na base, na ponta”, esclarece Belarmino. O que ele quer é capacitar pessoas que estão nas bases da sociedade para que possam avançar a partir do domínio de tecnologias disponíveis. Em novembro de 2017, promoveu uma oficina para artesãos sobre novas ferramentas digitais, em parceria com o Porto Digital.

“É botar um software nas mãos de um artesão, pra ele fazer a peça do jeito dele; é ensinar o cara pelo Youtube, que é uma universidade fantástica, sobretudo num país onde todo mundo tem um Samsung; ensinar a usar planilha pra fazer o financeiro; chegar pra um cara e dizer: tu vai ser MEI”, exemplifica. Belarmino já investiu cerca de R$ 1 milhão em projeto que parece estar alinhado ao movimento maker, embora ele não use esse termo. “Esse projeto está me dando uma canseira violenta. Estou pegando as máquinas e experimentando com a equipe, decidindo se é viável ou não. Se for, vai ser uma redenção pra eles e um aprendizado pra mim.”


Assista a um compacto da entrevista com Belarmino Alcoforado

4 Comments

  1. Belarmino é a minha referência de empresário e de ser humano. Devo muito a ele, por todas as nossas conversas que me fizeram ser o que sou hoje. Obrigado Grande JEBA !

  2. Viva o desbravador!

  3. Grande empreendedor , ireverente, cáustico, honesto , leal, um gentil homem….

  4. O pioneiro grande homem de visão

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